Roteiro original
O Carnaval, o Oscar, a virgem e o anjo safado
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Doralice, uma morena de corpo escultural e espírito irrequieto, era a primogênita em uma família singular para os dias da atualidade. Os pais, conservadores e católicos à moda antiga, cuidavam da virgindade da filha tal como das joias da família, guardadas em um pesado cofre que ficava no quarto do casal.
Então com dezenove anos, a moçoila que tinha duas irmãs de quinze e doze anos, só podia sair na companhia de pelo menos uma delas, ou então acompanhada por um dos primos maiores de idade que moravam no mesmo condomínio.
Entrementes, estava chegando o carnaval de 2025 e, coincidentemente, a data da entrega do Oscar. Doralice, cinéfila desde tenra idade, também adorava desfilar no bloco do bairro e, nesse ano, tinha uma motivação extra para tentar finalmente sair sozinha: havia combinado encontrar o Milton na casa de shows que iria promover um bailinho de salão e, ao mesmo tempo, transmitir a entrega do Oscar no telão.
Ah, carnaval, Oscar, Fernanda Torres… e o Milton! Seria um sonho viver tudo isso ao mesmo tempo. Em nome desse paraíso na terra, Doralice estava decidida a dobrar os pais para, dessa vez, conseguir sair sozinha.
-Pai, não tem risco nenhum. Essa casa de shows é renomada e tradicional, tem seguranças e fica perto do nosso bairro.
– Já disse que sozinha você não pode ir. Você ainda nem tem namorado.
– Mãezinha, diz pra ele que não tem problema, por favor. Fico junto com a turminha da igreja.
– Júlio, acho que ela já sabe se cuidar. Vamos dar um voto de confiança para a menina.
– Hum, tem certeza, Josélia? Ela ainda nem fez vinte anos. Se acontecer algo, a culpa será sua, mulher.
– Ora, pai, eu sou maior de idade e já provei que sou uma pessoa responsável.
– Então está certo, vamos te dar esse voto de confiança, concordou o pai, a contragosto.
Obtido o passaporte para a felicidade, Doralice imediatamente combinou o encontro com o Milton, aos olhos dela, o gêmeo univitelino do Kieran Culkin, separados na maternidade.
A noite foi um deslumbramento para muito além da imaginação de Doralice em todos os sentidos. Ela, fantasiada de bruxinha e, Milton, caracterizado como um anjo muito sedutor.
– Meu arcanjo, suspirou Doralice! Assim que viu Milton naquela fantasia, Doralice sentiu calafrios e teve a íntima certeza que seria difícil resistir às investidas de sempre.
Cumpridas as etapas da curtição carnavalesca na pista de dança e da vibração com o Oscar inédito para o filme brasileiro, Doralice e Milton, como que imantados por um irresistível magnetismo, escapuliram da festa de mãos dadas direto para o motel Divina Paixão. Quem passava por ali, achava engraçado ver um anjo, de asas e tudo, alugando um quarto.
Na manhã seguinte, já devolvida ao sacrossanto recesso do lar pelo Milton, Doralice acordou suspirando em meio a rosas vermelhas que ornavam a sua mente, ainda em êxtase.
– Bom dia, família! Cumprimentou a todos no café, com um sorriso luminoso.
– Foi tudo bem, filha? Perguntou Josélia, com uma expressão preocupada, afinal coração de mãe não se engana.
– Quem te trouxe para casa? Questionou Júlio, com uma cara enfarruscada.
– Sim mãe, tudo ótimo! Foi um amigo, colega de faculdade, pai.
Vinte dias depois do sonho realizado, Doralice procurou a mãe, um tanto cismada.
– Mãe, tô sentido umas coisas…
– Que coisas, menina? O que estás sentindo?
– Não sei bem, enjoos, tonteiras…vomitei ontem na faculdade.
– Ai, meu Deus! Tens que fazer o teste imediatamente, disse a mãe com o rosto mudando de cor.
– Teste? Ah…será??
– Minha filha, ou muito me engano ou ganhaste o Oscar de melhores efeitos colaterais pelo filme em que foste a protagonista, disse Josélia com sua ironia habitual.
– Meu Deus, meu Deus…o Milton jurou que não tirou a camisinha em momento nenhum! Se foi por graça do Espírito Santo ninguém sabe, mas o resultado deu positivo.
Chorando, Doralice agarrou-se à mãe:
– E agora, mãezinha? O que eu faço?
– Não adianta chorar, menina! Fala com o Milton e vamos tratar de organizar o casamento antes que o teu pai perceba alguma coisa.
Após ser notificado do fatídico desdobramento da noite do carnaval oscarizado e também da sugestão da dona Josélia, Milton, suando frio, revelou à Doralice a impossibilidade para aquele desfecho:
– Dora, sei que eu devia ter te contado antes, mas acontece que … já sou casado.
– Ai, Milton, não acredito! E agora? Meu pai vai me matar e te matar, não sem antes me deserdar, me expulsar de casa, me maldizer, me renegar como filha…
– Sinto muito, minha querida, como já te expliquei… eu não vou poder ajudar. Vou assumir a criança, mas, mais do que isso, nada posso fazer!
Abatida, decepcionada e em prantos, Doralice contou a mãe o impedimento de Milton.
– Hum…bem safado esse príncipe que arranjaste, hein, menina! Se é assim, então temos que partir urgentemente para um plano B., rosnou a pragmática Josélia.
– Plano B, mãe?
– Sim…vamos listar os rapazes recatados, circunspectos e tementes a Deus que gostam de ti aqui no condomínio.
– Hum…não gosto de ninguém por aqui, por isso nunca quis namorar nenhum deles, mas tem o Mendonça que eu acho até bonitinho e simpático.
– Serve, exclamou a mãe! O Mendonça é perfeito! Como é muito tímido, hoje mesmo vou falar com ele…direi que tu gostas dele e só esperas um convite para jantar, ir ao cinema, etc.
– Achas que o pai vai aprovar?
– Estás brincando? O Mendonça é o perfeito sonho de consumo do Júlio para genro: ultra-religioso, tem um bom emprego em um escritório de contabilidade, discreto, educado, caseiro, respeitador… ele é tudo!
Após o primeiro jantar do par, o namoro foi oficializado perante as duas famílias e o enlace progrediu rapidamente.
Para alívio do pai da criança, Doralice avisou Milton que iria resolver o seu problema de outra forma e que ele não precisava assumir o filho.
O namoro prosperou. Mendonça levou Doralice à missa dominical e a outros eventos sociais. Ele adorava passear orgulhosamente de mãos dadas com a bela pelos jardins do condomínio, enquanto as bocas de Matilde especulavam porque, repentinamente, a moça mais linda e desejada do pedaço tinha caído de amores pelo tímido e discreto contador que pouco tinha de atraente.
Após dois meses da noite do Oscar e depois de um mês de namoro com o Mendonça, Doralice já precisava apertar o abdome com uma faixa para não revelar a protuberância que crescia resolutamente. Mãe e filha decidiram que era hora de acelerar o plano B.
– Mendonça, você gosta mesmo de mim, quer dizer, você me ama mesmo?, perguntou a jovem com voz dengosa.
-Que pergunta, Doralice! Você tem dúvidas? Eu só quero viver para você agora! protestou Mendonça.
– É que, não sei como te falar…sabe, aquela noite em que a gente passou algumas horas no motel?
– Claro que sei, Doralice! Peço que me perdoes por isso, eu não queria te desrespeitar, mas você insistiu tanto! Não pude resistir…
– Não é isso, não estou arrependida, pelo contrário…mas é que eu engravidei!
Depois de empalidecer, revirar os olhos e engasgar três vezes, Mendonça conseguiu balbuciar:
– Jura, Doralice? Por Jesus Cristo…nós vamos ter um filho?
-Pois é…então acho que agora precisamos casar! Se o meu pai perceber a gravidez, ele jamais nos perdoará por termos cometido esse pecado antes do casamento!
– Sim, sim…claro! Então você aceita se casar comigo?
– Sim, Mendonça, eu aceito. Mas temos que marcar logo o dia do casório antes que todos percebam o que está acontecendo.
– Tens razão, minha querida! Hoje mesmo vou pedir a tua mão para os teus pais!
Apesar de algum estranhamento por parte do pai quanto à pressa, para alívio de Doralice e de dona Josélia, Júlio abençoou a união com satisfação.
Em duas semanas, Mendonça e Doralice estavam casados. A pedido de Doralice, o casal foi morar em uma casa que Mendonça alugou em outro bairro, um microcosmo mais chique e valorizado.
O nascimento do rebento, um menino sem muitas semelhanças com o pai, trouxe grande felicidade para as duas famílias. Doralice deixava o bebê, ora com uma avó, ora com outra, visto que decidiu retomar à faculdade que havia trancado após os dois últimos meses de gravidez.
Mendonça orava e agradecia penhoradamente a Deus todos os dias por aquela felicidade que sempre julgara inalcançável.
Entrementes, apesar de ser verdade que o diabo mora nos detalhes, ele pode também morar na aura para lá de charmosa de um Kieran Culkin cover.
Ao voltar às aulas na faculdade, Doralice reencontrou Milton.
Após a quebra do gelo e a superação do natural constrangimento entre eles, ambos passaram a conversar como velhos amigos. Todavia, ninguém tocava no assunto espinhoso que ligava as vidas de ambos, um segredo que, além dos dois, só era conhecido pela mãe de Doralice.
-Pois é Dora, eu estou separado agora…e, sinceramente, depois dessa experiência, nunca mais quero casar novamente. E o seu casamento, vai bem?
-Vai sim…o Mendonça é uma ótima pessoa, religioso, muito carinhoso e atencioso comigo e com o bebê.
-Legal! Mas ele é muito religioso, né? Não achas meio chato estares casada com uma cópia do teu pai?
-Pois é, mas nada é perfeito, não é mesmo?
Conversa vai, conversa vem e a antiga atração novamente se instalou entre eles. Não demorou até que Milton convidasse Doralice para um chopinho após a última aula da noite…e, daí para o Divina Paixão, foram dois palitos.
Depois de outra noite ardente entre os amantes, necessariamente rápida para não comprometer Doralice, Milton a deixou em casa. Antes de sair do carro, ela falou:
– O Mendonça faz serão no escritório até depois da meia-noite ao menos dois dias por semana. Depois passa na casa dos meus pais para pegar o Kaiquinho, mas sempre me avisa antes quando está vindo. Ele só costuma chegar lá pelas duas da manhã.
A partir daí, Milton começou a frequentar a casa (e a cama) do casal duas noites por semana, lá permanecendo até Doralice receber o aviso de que o marido estava a caminho.
Aos poucos, Milton foi se acostumando com os curtos períodos de “meia vida caseira” no lar de Doralice. Ficava de cuecas assistindo televisão, pegava cerveja na geladeira, pedia pizza pelo aplicativo, tomava banho cantando, calçava os chinelos do Mendonça…somente fumar dentro da casa era proibido, pois o dono era anti-fumante convicto como todo ultra-religioso e, certamente, farejaria o cheiro de cigarro a léguas de distância.
O arranjo dos amantes funcionou maravilhosamente por três meses. Não obstante, como planos de crimes perfeitos não costumam dar certo nem mesmo nas estórias da Agatha Christie, um dia a porca teria que torcer o rabo.
Em determinado dia de serão, Mendonça ficou sem bateria no celular e não pode avisar a mulher que estava a caminho.
Ao chegar em casa, como sempre fazia, Mendonça deixou o seu Citroen em frente à garagem cuja porta só abria por dentro e, silenciosamente, entrou no quarto do casal com o filho no colo para beijar a esposa.
A cena estarrecedora que Mendonça visualizou quase fez com que ele derrubasse o bebê, mas em um incrível reflexo paternal, ainda conseguiu segurar o filho nos braços.
Doralice , nua em pelo, jazia agarrada a um anjo de longas asas.
A mulher deu um grito felino quando viu o marido perplexo com o filho no colo, olhando para eles. Milton arregalou os olhos e, instintivamente, mergulhou para baixo do edredom.
-Mas o que é isso? Conseguiu balbuciar Mendonça, quase ao mesmo tempo em que, num sopro de energia restante, deitava cuidadosamente o filho em um sofá ao lado da cama.
O “isso”, evidentemente, todo marido traído deveria saber de pronto.
Mas, para sorte dos amantes, talvez não o Mendonça.
Doralice, em desespero de causa, falou, quase gritando:
– Você não está vendo, Mendonça, ele é um anjo!
– Um an-an-jo de verdade? gaguejou, Mendonça, tremendo dos pés à cabeça.
Percebendo a oportunidade, Milton recuperou a sua destreza mental e, mesmo com as asas um tanto amassadas, ergueu-se e fez uma voz de trovão:
– Sim, irmão, o arcanjo que Deus enviou para abençoar vocês e o vosso virtuoso lar. Agora, ajoelhe-se!
– Ajoelhe-se, Mendonça! reforçou, Doralice.
Em estado de arrebatamento e catarse, Mendonça não demorou a obedecer a ordem do “anjo”.
Raciocinando rapidamente, Milton emendou outra ordem:
– Agora preciso retornar à morada do senhor Jesus, mas, antes, solicito que o casal se retire e me deixe a sós para eu terminar a benção e a purificação do quarto.
– Vamos Mendonça, disse sofregamente Doralice, saltando apressadamente da cama e colocando o roupão. Pegou o filho com um braço e, com o outro, puxou o catatônico Mendonça para fora do quarto.
Freneticamente, o “anjo” trocou a fantasia pelas roupas normais e saltou pela janela, saindo em desabalada carreira em direção ao carro estacionado do outro lado da rua.
Na noite seguinte, os amantes se reencontraram na faculdade e atualizaram a validade da distópica situação. Apreensivo, Milton perguntou:
– Dora, passei nervoso o dia inteiro, mas achei melhor não falar contigo pelo celular. Você acha que a estória do anjo colou mesmo?
– Sim, temos que ter cuidado sempre. Olha, no início eu tive sérias dúvidas se ele iria engolir a fábula por muito tempo…mas, agora, já estou bem tranquila, disse Doralice.
– Sério? Como assim, bem tranquila? Ele nem desconfiou?
– Ele está muito feliz por termos sido escolhidos para receber a visita de um anjo. Orou e louvou várias vezes em gratidão ao senhor pelo privilégio das bênçãos para o nosso lar.
– Incrível! Se é mesmo assim, acho que também temos que agradecer muito a todos os outros deuses, disse Milton, mais relaxado.
– Está tudo sob controle, agora podemos ter as nossas duas noites semanais sem nos preocuparmos com eventuais imprevistos.
– Epa, não sei se vou ter coragem para voltar lá…falou Milton, cautelosamente.
– Deixa de bobagem! A partir dessa epifania na cabeça dele, o anjo será sempre bem- vindo e motivo de satisfação e alegria.
– Será? Mas…e o Kaiquinho? O menino vai crescer, não vai?
– Pensaremos nisso com o tempo, mas o certo é que vamos ensinar o Kaiquinho a ser tão religioso e a ter tanta fé como o pai dele.
– Hum…em se tratando de fé, melhor ele não ser como o verdadeiro pai, né?
– Os dois são pais, meu amor!
– Pode ser, mas…e se o seu marido contar a estória para alguém? Aí podemos nos estrepar!
– Eu já fiz ele jurar jamais contar o milagre para alguém… nem mesmo em confissão. Disse para ele que, se isso acontecer, o anjo nunca mais voltará e o nosso lar será amaldiçoado .
– Minha querida Dora, tenho que confessar, você me surpreendeu: isso é absoluto cinema!
– Querido, eu nasci para ser feliz, não importa em que condições ou situação. Talvez seja mesmo a vontade divina. Ainda estamos aqui, juntos, não estamos?
Dito isso, os amantes se abraçaram e se beijaram apaixonadamente! Após o beijo, Milton filosofou:
-Minha linda Dora, nós dois bem merecíamos um Oscar, não achas?
-Em que categoria? brincou Doralice.
–Podes escolher: melhor figurino, efeitos especiais, ator, atriz, roteiro original… ou um Oscar pelo conjunto da obra!
