Toque na campainha
Quem se perde na trilha do mato, ele ou ela, acaba por perder a honra na picada
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Já tive e tenho amigos de todos os tipos, tamanhos e qualidade. Cada um com sua história, todos estão carinhosamente arquivados do lado esquerdo do peito. Exclusivamente por questões de foro íntimo, não conto fatos ou causos protagonizados ou vinculados aos amigos ainda vivos. Como os mortos são invisíveis e não ausentes, procuro incluí-los em minhas narrativas, de forma a transformá-los em pessoas constantes. Obviamente que deliberadamente excluo os que se foram virgens, os recatados e os que partiram por conta da ira de maridos eventualmente traídos e desconhecedores da máxima da socialização de bens mortais.
Com pouco mais de um metro de altura e 22 centímetros de envergadura, Miudinho foi um amigo diferenciado. Responsável pela minha eterna simpatia pela séria, explicativa e inquietante doutrina espírita, ele discorria naturalmente sobre sua primeira experiência. Sem qualquer preocupação com os preconceituosos, Miudinho ria dele mesmo ao contar sobre sua entronização em um centro espírita. Entrando triste e saindo feliz, com a cara de quem havia faturado uma bolada na Mega Sena, ele se antecipava aos curiosos e dizia: Estou feliz porque agora não sou mais anão. Eu agora sou médium.
Um dos amigos mais próximos que já tive, ele partiu sem me contar o verdadeiro desfecho de sua trágica história. Pequeno, mas aventureiro dos bons, casou-se com uma moça também corajosa e arrojada. Amantes de escaladas e trilhas intermináveis, ambos se embrenhavam por qualquer mata que representasse um mínimo de perigo. Acabaram mal. Em uma dessas aventuras, a mulher se perdeu. Foi encontrada semanas depois por um grupo estranho de nativos locais. O lugar do achado ficava a muitos quilômetros da humilde residência do casal.
Chamado para o reconhecimento de praxe, o feliz marido acabou surpreendido com a tradição daquele povo amaldiçoado. A regra era clara. Se perdeu, alguém achou e não há hipótese de barganha. Tem de dar o que há de mais precioso no ser humano: a honra. Apesar dos apelos em favor da patroa, do chororô e das ameaças do amigo, não houve jeito. É a tradição. Fizeram fila para o créu. Foram horas de créu, créu, créu e créu. O pior da história é que, meses após o acontecido com a cônjuge, Miudinho se perdeu na mesma vereda. O resultado é que a picada também foi a mesma.
Nunca saberemos se a volta ao atalho foi por gosto ou pela obrigação de reconstituir o crime. A história que contam é que, passados muitos anos, o sujeito reapareceu com nova fisionomia e com novo apelido. Cuca era o nome de guerra que havia assumido após o longo período sob vara. Obviamente que a emenda ficou pior do que o soneto. Depois disso, a figura de seu Cuca se transformou em algo parecido com um pronome do caso reto. Bastava encontrá-lo para que os adolescentes e jovens do bairro se dirigissem a ele com um chamamento nada republicano: Seu Cuca é eu.
Por falar em homem pequeno, não há como esquecer a pitoresca história de seu Tião Melo Rego. Abastado, ele tinha uma filha lindíssima, daquelas que arrumaria marido até na Casa Branca. Mesmo assim, seu Rego colocou um anúncio no maior jornal da cidade, exigindo um pretendente bem-dotado, corajoso e rico. No dia seguinte, toca a campainha um anão sem os dois braços e pede a mão da militante donzela. Depois de tirar do bolso um milhão de dólares e mostrar atestados confirmando que perdera os dois braços em duas guerras diferentes, faltava o tiro final. Confrontado a respeito do piupiu avantajado, respondeu com uma pergunta: “Como o senhor acha que toquei a campainha?”
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*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras
