Iracema e Iraci
Contra mais atritos, melhor deixar mágoas enterradas no Campo da Esperança
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Naquele tempo, naquele lugar, cercanias do que anos após viria a se tornar a nova capital do país, filhos homens iam para lavoura com o pai. Filhas, assim que aprendiam a lavar louça, eram enviadas para casa de família, onde começavam a trabalhar. Foi assim com a pequena Iracema, pouco depois de completar sete anos.
De tão mirrada, a patroa tratou de arrumar um banquinho para que a menina alcançasse o fogão. Iracema precisou se acostumar com o fogo tão perto dos seus braços finos, bem como suportar a quentura da água do feijão avermelhando seu rosto infantil. Óleo quente, então, respingava e a garotinha aprendeu a lidar com tamanha dor.
Problema maior era enfrentar as noites solitárias no quartinho dos fundos, quando as luzes eram apagadas e o choro chegava silencioso para não atrapalhar o sono dos donos da casa. Sentia falta dos pais e dos irmãos, e imaginava que um dia sua mãe iria buscá-la, mas o tempo passou e carregou todas as esperanças.
Iraci, a caçula, por sorte, quando chegou a idade de ganhar o destino de Iracema, a família se mudou para o Distrito Federal, cujas construções necessitavam de braços fortes e mãos dispostas a preparar a boia para tantos candangos. Enquanto os irmãos viraram ajudantes de pedreiro, o pai e a mãe trataram de construir um barraco com alguns cômodos, sendo o principal um vão com mesas e cadeiras, onde eram servidas refeições aos trabalhadores das empreiteiras. Não ficaram ricos, mas a vida melhorou.
Sem tempo e coragem para resgatar Iracema, os pais deixaram os anos passarem, até que, quando a filha, já mulher formada, decidiu aparecer. Ficou por um outono e um inverno, até que percebeu que seu caminho era solitário. Saiu sem se despedir, apesar de, vez ou outra, mandar notícias.
Iracema não casou nem teve filhos e hoje, já velha, divide sua solidão com duas gatas, ambas castradas. Raras são as visitas, inclusive dos irmãos, que se dispersaram pelo mundo. Iraci telefona duas vezes por ano, sendo uma no aniversário da irmã e outra no Natal. Trocam poucas palavras, até que o constrangimento se instala. Há coisas que é melhor deixar enterradas, como os pais, que repousam no cemitério Campo da Esperança.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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