Tristes lembranças da Estrutural, onde quem apanha, nunca esquece
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emFotos em jornais, vídeos gravados e diversos documentos oficiais, entre liminares da Justiça e impeditivos de órgãos ambientais. Junte um calhamaço de material assim. Nada, porém, consegue ser tão rico em detalhes e com tanta força sentimental como a história contada pela própria boca dos moradores da Estrutural, remanescentes dos conflitos com a Polícia Militar que marcaram o que ficou conhecido como ‘o massacre da Estrutural’ e a vida que seguiu na segunda metade da década de 90.
Seguindo esse raciocínio, Notibras percorreu as ruas da Estrutural e achou diversos personagens dessa biografia social. E reúne a seguir, alguns relatos. A ideia era transcrever a cena que martela diariamente na memória desses moradores.
Mas o que a reportagem percebeu em algumas abordagens foi um misto de medo, decepção e tristeza. Nem sempre transmitida nas palavras, mas nos olhos marejados de alguns e de apreensão de outros. Nem todos foram gravados. Apenas conversaram conosco. Muito menos queriam ser clicados.
Com praticamente toda cabeleira grisalha, diferente da época em que esteve na linha de frente dos embates com a PM, o comerciante Antônio Walter, mais conhecido como Tonhão, conta com certo orgulho sua história. E o momento que o marcou denota um altruísmo aflorado nos moradores durante os conflitos.
“No dia que teve um tiroteio onde hoje é um posto da PM – foi na época em que fomos removidos de lá para cá, no ano de 95, onde agora é a cidade do automóvel – tivemos dois baleados. Um deles foi o Antônio, que era o meu vizinho. Eu ia subindo lá para o conflito também. Eles (PMs) já vinham atirando com balas de borracha. Uma pegou na minha perna e outra nas costas da Marlene (Mendes). Eu lembro demais. Ele (Antônio) levou dois tiros de bala de verdade. Aí ele caiu e corremos para socorrê-lo. E o levamos para o hospital. Ele sobreviveu, graças a Deus, mas hoje ele respira com dificuldades. É até aposentado por causa disso”.
Em outra conversa, o receio. Morador desde 1974, ele pede para não se identificar. Embora tenha relutado para contar algum relato da sua vida na Estrutural, aos poucos concordou em falar. Sua justificativa era plausível. Ele não consegue mais montar as peças na hora de construir sua narrativa. A idade fez isso. Mas ao se sentir a vontade contou um episódio que não sai da sua cabeça.
A data não se recorda bem, mas acredita que por volta de 1997, ele e sua família estavam organizando a festa de 15 anos de sua sobrinha. Vendo a movimentação, policiais que faziam ronda no local chegaram à casa de Z.B. (Assim que ele se identifica. Só as iniciais, para preservar sua identidade). Questionaram o que haveria ali. Dono da casa, ele disse que seria uma festa de aniversário. Sem qualquer decisão judicial, os PMs disseram que não haveria a tal comemoração. Os coturnos, fardas e armas, porém, não intimidaram Z.B., que contrariou os soldados e ainda agiu com ironia. “Terá sim a festa e vocês estão convidados”.
Talvez uma das personagens mais simbólicas do período conturbado da Estrutural seja a Marlene Mendes. Seu nome é sempre um dos primeiros a aparecer quando se conta a história da cidade. Decepcionada com a Justiça e com a política, a moradora é outra que esconde cada instante dos tristes conflitos na memória. E é assim que prefere. Não falar sobre nada. Evita a dor, diz.
Mas a Notibras ela concordou em abrir seu baú particular, desde que não fosse gravada. Mais do que ter uma casa invadida, Marlene sentiu na pele a opressão policial. Teve marcas na pele. Levou tiro de borracha. Inalou gás de pimenta tentando impedir o avanço de PMs na comunidade. Mas dor nenhuma em seu corpo foi maior do que ver seu irmão morrer em decorrência das agressões que sofreu. Foram chutes nos rins que lhe implicou problemas renais. Foram anos de hemodiálise até chegar a óbito três anos atrás.
Pior do que sofrer a violência policial, é ver seu filho presenciando tudo. As imagens ruins sempre insistem em se perpetuar mais do que as boas lembranças. A filha de Marlene, Nayara Mendes, reconta esse flash escuro de seu passado. Sua mãe tinha uma creche. Certa vez, um barulho chamou a atenção. “Nesse dia foi derrubado o banheiro da creche dai eles invadiram lá em casa e atiraram na minha mãe”, relembra.
Essa não foi a única derrubada. Naquele período foram dezenas. Centenas. Mas o que mais decepcionava os moradores não era nem a ação violenta, as balas de borrachas ou o gás de pimenta, mas a quebra de acordo. O governo assinou um documento com cada morador que era transferido de uma área para a outra, dentro da própria Estrutural.
A ideia era reorganizá-los. Segundo Marlene, que era representante da associação dos moradores locais, o acordo era o seguinte: haveria a remoção, mas depois de transferidos, não teria derrubada. E o morador que tivesse esse documento estaria resguardado. Estaria. Marlene conta que o governo voltou a desmantelar os barracos. Ela e outros fazem coro a velha máxima: “Quem apanha nunca esquece”.
O governador na época Cristovam Buarque garante que houve diálogo com a comunidade. Ele afirma que fez todas as tratativas para não haver conflitos. A entrevista completa dele estará disponível na segunda-feira, 27, como parte desta série especial.
Elton Santos