Salgueiro leva a malandragem para a avenida e a Vila quer abafar com Miguel Arraes
Publicado
emRoberta Pennafort, Fábio Grellet, Clarissa Thomé e Carla Miranda
Com uma ode ao malandro, o Salgueiro fez nesta segunda-feira (8) na Sapucaí um desfile à altura do campeonato com que tanto sonha. A escola, “mordida” por dois segundos lugares seguidos, em 2014 e em 2015, arrebatou a avenida com um samba de refrão contagiante e batida com sabor africano, que já era o mais cantado no pré-carnaval e ganhou mais força no Sambódromo. O casal de carnavalescos Renato e Márcia Lage retratou o malandro das ruas, dos becos, do boteco, do carteado, das corridas de cavalo, do teatro de revista e das religiões de matriz africana, “o rei das favelas”, apresentado em carros alegóricos e fantasias ricamente executados.
Na figura do Zé Pilintra, entidade das mais importantes das religiões africanas que é exaltada no enredo, o malandro, de chapéu, terno branco e sapato bicolor ou na versão de camiseta listrada, sambou “num palco sob as estrelas”, acompanhado de componentes caracterizados como a Pomba Gira. Potentes, as performances foram muito aplaudidas. A escola ganhou o público, que a saudou como campeã na dispersão. No domingo (7), somente a Beija-Flor, que fez um desfile sobre o Marquês de Sapucaí, mereceu essa deferência.
O malandro batuqueiro do Morro do Salgueiro, na Tijuca, zona norte do Rio, é do bem. Circula pela Praça Tiradentes, no centro do Rio, por cassinos, convive com prostitutas, transformistas e mendigos e tenta driblar as dificuldades da vida. O enredo se chama “A ópera dos malandros”, uma referência ao musical de Chico Buarque, que aprovou a ideia, mas não desfilou. Max Overseas, o malandro de sua obra, desfilou, assim como Geni – a bateria de mestre Marcão tinha máscaras do personagem, e um zepelim sobrevoou os ritmistas (a estrutura inflável era segurada por componentes no chão por meio de cordas).
A escola foi ajudada financeiramente por praticantes de religiões africanas que são devotos do Zé Pilintra – Renato Lage deu entrevista dizendo que o enredo era em homenagem à entidade, uma novidade na Sapucaí, em sua visão, e que esta intercedeu para que a apresentação tivesse sucesso.
A presidente Regina Celi Fernandes estava confiante no bom desempenho. Na concentração, ela vivia a expectativa de superar a Beija-Flor, atual campeã e melhor a desfilar na primeira noite de desfiles. Ela assumiu o microfone dos cantores para pedir aos integrantes da escola que cantassem. “É só isso que precisamos: que todos cantem”. No setor 1, a escola conquistou a arquibancada com uma rápida apresentação da comissão de frente, que representou os malandros dançando com as damas da noite. O público não abandonou o Salgueiro Sapucaí adentro.
Vila Isabel – A Vila Isabel abriu a noite contando a vida de Miguel Arraes, político cearense três vezes governador de Pernambuco. A escola retomou uma tradição de enredos políticos, com forte cunho social. Logo no começo da apresentação, a comissão de frente de Jaime Arôxa trouxe um cortejo fúnebre nordestino, com corpos carregados em redes, e a morte pairando sobre a avenida – um belo efeito da patinadora Telma Delelis, que não parecia patinar, mas deslizar. “Não é a morte física. É a morte pela falta da cultura, da educação. E combina com o carnaval, porque a vida retoma com a chegada da cultura”, explicou Arôxa.
Para homenagear o centenário de Arraes, as mazelas sociais que ele enfrentou foram lembradas na avenida: a seca, as moradias sobre palafitas, as dificuldades dos cortadores de cana, o analfabetismo. Esses temas vieram ao lado de ícones culturais de Pernambuco, como o frevo e o bloco carnavalesco Galo da Madrugada, que mereceu um enorme carro ao fim do desfile. “É obrigação da escola de samba trazer uma mensagem, apresentar uma proposta, fazer a crítica social”, afirmou Martinho da Vila, autor do enredo e um dos compositores do samba, ao lado da filha Mart’nália, de Arlindo Cruz , André Diniz e Leonel. Martinho encarnava um cangaceiro. O sambista se emocionou do começo ao fim da passagem da escola, da qual é presidente de honra e símbolo maior.
Os filhos do ex-governador, a ministra do Tribunal de Contas da União Ana Arraes e o cineasta Guel Arraes, e o neto Antonio Campos, filho de Ana, desfilaram à frente da Vila. “Esse é o enredo sobre um político que teve compromisso com o povo, que não desistiu nunca, jamais. É preciso lutar por um Brasil democrático. Toda a família está muito satisfeita”, afirmou Ana
Se o começo do desfile teve tons pálidos, aludindo à seca, à caatinga e ao mangue, a escola foi ganhando cores ao longo da apresentação, quando entraram os programas de educação criados por Arraes e as expressões culturais nordestinas, como o cordel, o xaxado e os repentistas. O carro que representou o Galo da Madrugada, todo colorido, soltava bombas de serpentina e ganhou muitos aplausos do público. Arraes só foi representado ao fim, num boneco de Olinda, ladeado por integrantes vestidos como foliões do Galo da Madrugada.
A bateria veio vestida de Leão do Norte, figura presente na bandeira pernambucana, um tributo à força do povo. Sabrina Sato era a guerreira que defendia esses leões. “Eu represento a coragem e a ousadia da mulher pernambucana. Essa mulher forte. É um enredo lindo, que faz essa união do frevo com o samba. A Vila é uma escola tradicional que sabe fazer essas misturas muito bem”, contou a apresentadora, que desfilou com grandes curativos nos ombros. Ela ficou machucada no desfile da Gaviões da Fiel, em São Paulo. “Dizem que na hora a gente não sente. Mentira. Sente, sim. Mas a emoção é tão grande que você segue em frente”, disse Sabrina.
O tom político já havia sido sentido na avenida no domingo (7), durante o desfile da Mocidade. A escola falou de Dom Quixote de La Mancha e ousou ao comparar os moinhos enfrentados pelo personagem de Miguel de Cervantes aos percalços da vida do brasileiro; entre eles, a corrupção. A comissão de frente fazia alusão ao escândalo na Petrobras.