Dor do racismo, das cadeias senzalas, rendem Grammy ao rapper Kendrick Lamar
Publicado
emPedro Antunes
Uma lâmina afiada percorre a pele. Não importa a cor dela, seja branca, seja negra, seja azul, seja amarela, seja vermelha, seja roxa, é manchada de sangue. Ela se abre, os estímulos vão direto para o cérebro e a resposta é a dor. A repulsa. A fuga.
Kendrick Lamar, durante pouco mais de sete minutos de apresentação na cerimônia do Grammy, na madrugada desta segunda-feira, 15, foi a faca – facão, espada, ou como você quiser imaginar. Ele abriu um talho em cada um que assistiu a sua performance. Sangrou e, sim, doeu. Lamar escancarou o que o excelente disco To Pimp a Butterfly já dizia, mas alcançou um público muito maior. Racismo, preconceito, opressão. Lamar e bailarinos, todos negros, entraram no palco acorrentados, pulsos presos, algemados. “Cadeias são as novas senzalas”, conta, canta e vocifera o rapper. Jovens negros e pobres foram alvejados e mortos por policiais brancos em diferentes pontos dos Estados Unidos. A tensão racial é grande, prestes a eclodir novamente. Lamar, com disco e performance no popularesco Grammy, avisa o quanto pode.
To Pimp a Butterfly é o melhor álbum de 2015, não importa o que o Grammy diga. É o que há de mais contemporâneo, relevante, incisivo e perturbador. Hip Hop, rap, não são capazes mais de enjaular as 16 faixas criadas por Lamar. Não, os gêneros de origem negra são dizimados aqui. Jazz, blues, gospel, funk, disco e soul são esparramados, misturados, como uma coisa só. Todos têm a mesma origem, afinal, e dialogam juntos sob a batuta de Lamar e seus produtores.
O disco é um Pollock, expressionista abstrato cujas telas podem ser vistas no MoMa, em Nova York. A desordem criada a partir do instinto. Difícil explicar porque o queixo cai quando se está diante de um Pollock. É o mesmo que acontece com To Pimp a Butterfly. Cores desassociadas, retorcidas e misturadas, à contragosto, criadas a partir de um instinto artístico. Para um leigo ou alguém que incapaz de se conectar à arte de Pollock, suas delas são um emaranhado de tintas e cores sem qualquer sentido. O mais recente disco de Lamar, também. É preciso apreciá-lo para entender que até uma virada torta tem o significado de tirar você, o ouvinte, daquilo que o pop e/ou o jazz o ensinou a esperar.
E, se não bastasse a revolução sonora, Lamar é visceral em suas rimas. Urra injustiças, escancara diferenças raciais sofridas por ele e outros que sequer fazem sentido existir em 2016. Incompreensíveis e, o mais devastador, extremamente reais. Na América do Norte e do Sul. Em Compton, subúrbio perigoso onde Lamar nasceu e viveu, e no seu bairro, seja Perdizes, Santa Cecília, Pompeia, Tatuapé, Penha, Mooca, Interlagos ou Higienópolis. Cor de pele ainda difere uns dos outros. Lamar grita isso, com todas as suas forças. Será que ainda há alguém capaz de ignorar essa questão?
As 11 indicações ao rapper, se é que ele ainda pode ser categorizado desta forma, garantiram ao trabalho o afago que a indústria se dá o direito de conceder. Lamar não é uma Adele, ou uma Taylor Swift, não abre o coração em busca de um novo amor, ou canta sobre um pé na bunda – e, muita calma, entendo que as moças são muito mais do que isso. Seria muito idealista imaginar que ele ganharia do blockbuster que é Swift e seu popzíssimo disco 1989. Não. A indústria, com as 11 indicações e premiações específicas, ligadas ao hip hop, mostra que está atenta ao trabalho dele, mas ainda é incapaz de premiá-lo nas principais categorias.
Não é questão de alguém vencendo outro, embora os estereótipos estejam aí para quem quiser fazer sua análise rasa – o rapaz pobre e negro, canta o racismo, e perde da garota branca, cabelo impecável que pega para si atitude girl power e a transforma em uma máquina de hits. O pop e a indústria de massa ainda não estão preparados para abraçar um álbum cujos versos acusam diretamente com uma parcela da população, revelando uma sociedade quebrada. Não, o pop da massa ainda sobrevive de temas universais, o amor, coisas assim. Mas, esperamos, falta pouco parao pop compreender a obra do rapper.
Lamar fez o disco que o mundo todo precisava ouvir. Nem todos notaram To Pimp a Butterfly quando foi lançado, contudo. No fim de 2015, as listas de melhores discos do ano o colocou no topo e mais alguns dedicaram tempo para ouvi-lo. A performance no Grammy escancarou sua mensagem aos olhos e ouvidos daqueles que ainda o evitavam, involuntariamente ou não. Lamar é a faca, Lamar abre a ferida, com dor, para tirar do corpo aquilo que faz mal, um câncer, o racismo.