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Vencendo discriminação e ganhando mais espaço no duro mercado de trabalho

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Sumaia Villela 

Dos 22 milhões de brasileiros que superaram a pobreza extrema nos últimos quatro anos, 12 milhões são mulheres. É o caso de uma costureira dona de sua própria confecção, na comunidade Ilha do Chié, no Recife, de uma vendedora de acessórios para celular e computador da comunidade vizinha de Ilha de Santa Terezinha e de uma sertaneja que vende centenas de quentinhas para empresas, em Inhapi, interior de Alagoas. Em todas essas histórias de superação da pobreza, três palavras se repetem: autonomia financeira da mulher.

A condição precária de vida ainda não foi ultrapassada, mas a vontade de ser independente e a determinação para criar uma fonte de renda não faltam para Leide Laura Tavares de Medeiros, 30 anos, moradora da comunidade Ilha de Santa Terezinha, no Recife. Ela conta que trabalhou nas mais diversas áreas. “Já fui copeira, camareira, costureira, empregada doméstica, babá, tanta coisa”, enumera. Depois de tantos anos de trabalho e de só conseguir a carteira assinada em dois empregos, ela resolveu empreender.

À época, ela não contava com recursos e também não preenchia os requisitos para conseguir um empréstimo no banco. Mas nada disso abalou a vontade de Leide Laura. O negócio começou pequeno e com a única fonte certa de dinheiro que contava: o Bolsa Família. Mãe de 4 filhos, a pernambucana ganha R$ 265.

“Eu vendo teclado de computador, mouse, capa de celular, fone de ouvido. Tudo nessa barraquinha aqui em frente de casa”, mostra, apontando para um cubículo ligado à rua por uma janela protegida com tela. A porta da lojinha dá para o único quarto da casa, que acumula os dormitórios de todos os filhos. Ela e o marido dormem em um sótão improvisado.

A conta é a seguinte: todo mês, a empreendedora investe R$ 100 na barraquinha. Os outros R$ 165 ela “coloca em casa”. “Essa cama mesmo eu comprei com o benefício”, aponta, mostrando um beliche de material popular. E, com o dinheiro multiplicado pelo lucro das vendas, Leide compra mais coisas para as crianças. “Antes quando passava alguma coisa na televisão e eles pediam eu falava que não podia dar. Agora já falo que se estiver na promoção eu dou”, compara. “O negócio não é a quantidade, mas ter a coisa certa. Tem que saber administrar. Senão não rende nada”.

A nova fonte de renda também mudou o poder exercido em casa em relação ao marido, que é pedreiro e trabalha por diária, sem carteira assinada. “Meu marido não queria que eu trabalhasse, queria que eu ficasse em casa. É muito machista ele, mas hoje ele melhorou um pouco porque coloquei na cabeça dele que nós, mulheres, somos independentes”, disse.

Força contra violência – E se o Bolsa Família é hoje, para Leide, um instrumento para empreender e superar a pobreza, no passado já a ajudou a superar a opressão dentro de casa. Em seu primeiro casamento, ela sofreu violência psicológica, emocional e financeira. A pernambucana conta que o ex-marido era usuário de crack e bebida alcoólica. “Quando eu era jovem também bebia, fumava, mas ao engravidar eu parei. Eu pedia para ele não usar droga dentro de casa, mas ele falava que a casa era dele e ele fazia o que quisesse”, lembra.

A família precisou fugir do município onde morava, Itapissuma, litoral norte de Pernambuco, porque o ex-marido matou um desafeto e os amigos do morto queriam vingança. Por isso, foram parar no Recife. Mas a mudança de local de moradia não trouxe diferença de comportamento: os abusos continuavam a ocorrer. “Eu estava com tanto medo porque ele era uma pessoa que gostava muito de me ameaçar. Falava: ‘se você me deixar eu vou matar toda a sua família’. Eu ficava com medo porque ele sabia onde meus irmãos moravam. Eu fiquei com ele por pressão psicológica”, revela Leide.

Quando tomou coragem para se separar, fugiu para uma casa abrigo, local que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica. Ela lembra da última vez que pisou na casa em que morava com o ex-marido. “Nesse dia tomei uma decisão: ou eu morro ou meus irmãos morrem, mas aqui eu não fico. Estava operada de hérnia, coloquei minha filha menor no colo, peguei uma condução e entreguei nas mãos de Deus”.

A mãe do ex-companheiro a apoiava e, quando resolveu desfazer o casamento, foi para a então sogra que confiou o cuidado dos filhos. “Eu não tinha para onde ir. Acabei dormindo na casa dos meus patrões, trabalhando como doméstica. Eu deixei meus dois filhos com ela, junto com o cartão e a senha do Bolsa Família. Ela usava o dinheiro para sustentar os meninos”. Na época, o programa pagava a ela R$ 113.

Mesmo quando estava desempregada e morando de favor na casa de conhecidos, Leide conta que a prioridade era a alimentação das crianças. “Eu passei fome, mas meus filhos nunca passaram. Prefiro tirar da minha boca para dar a eles. A gente é adulta e aguenta. Eles não”.

Trabalho e poder – Feliz no casamento, Maria do Bom Parto Barbosa dos Santos, 49 anos, não tinha o jugo de um marido opressor a enfrentar, mas a pobreza era sua grande adversária. E a luta, em anos anteriores, era travada apenas com o dinheiro do marido que trabalha como padeiro. Ela era dona de casa. Mas dentro dela havia a inquietude, a vontade de ter o próprio dinheiro.

“Eu sou uma pessoa que procuro fazer, inventar, procuro criar. Sou uma pessoa muito inquieta, não gosto de ficar parada. Estou sempre fazendo alguma coisa”, ri, enquanto mostra as roupas que está consertando ou as bonecas de pano que produz.

Hoje costureira e empresária, Maria tem loja própria, que funciona na frente da casa onde mora, na comunidade Ilha do Chié, também no bairro de Santo Amaro, no Recife. Ela vende roupas infantis e adultas a preços populares. Tudo a R$ 5, R$ 10, R$ 15. Ao lado da loja, também há um pequeno armarinho onde ela vende cerveja, salgadinho e doces.

Segundo ela, tudo começou com a renda extra de R$ 40 do Bolsa Família. “Comecei a receber quando meu filho tinha uns 7 anos. Até ele fazer 16 eu recebia o mesmo valor. Era muito pouco, mas eu investia. Comprava pipoca, salgadinho. Aí fui sempre vendendo e comprando de novo para não deixar faltar”, lembra. E, assim, o talento de empresária nasceu em Maria.

Ela conta que tinha vontade de parar de receber o benefício. “Eu não me sentia muito bem em estar recebendo [o Bolsa Família]. Não sei se é orgulho, o que era. Só sei que eu queria estar me movimentando, fazendo alguma coisa, não depender daquele dinheiro. Até porque um projeto do governo não é para vida toda. Eu não contava, assim, com ele, totalmente. Mas quando vinha ficava muito feliz. Foi assim que eu comecei”.

Depois de alguns cursos, conseguiu um empréstimo de R$ 2 mil e decidiu abrir a loja de confecções. Ela ainda paga as prestações, mas este ano o negócio não vai muito bem. “O povo parou de comprar, agora só sai besteira. Mas como é na frente da minha casa eu deixo aberto”. Mesmo assim, Maria nem pensa em parar de empreender.

“Quando a gente trabalha fica poderosa. Por isso não gosto de estar parada, gosto de fazer alguma coisa. O que a gente quiser fazer com o dinheiro da gente a gente pode. Não fica dependendo só do marido”, defende, sem deixar de elogiar companheiro: “meu marido é maravilhoso, e ele me apoia no que eu faço”.

Feminismo na prática – A organização de mulheres na comunidade ajudou Maria do Bom Parto a amadurecer o discurso de independência e as ideias de ter um negócio próprio. De acordo com a empreendedora, ela ouviu e usou bastante um conceito que a acompanha até hoje: o feminismo. Na Ilha do Chié, a organização não governamental Espaço Feminista do Nordeste para a Democracia e Direitos Humanos iniciou a discussão por meio da associação de oradores local.

O Espaço Feminista atua com mulheres rurais e urbanas para a formação política e a criação de projetos de geração de renda. A diretora executiva do movimento, Patrícia Chaves, trabalha em cinco comunidades da região, incluindo a do Chié e de Santa Terezinha. A iniciativa mais nova é a abertura de uma cooperativa têxtil com as costureiras desses locais, aproveitando o conhecimento adquirido na época em que uma fábrica da vizinhança atraiu muitas profissionais da área para lá.

Patrícia fala que, além de a própria mulher se beneficiar da independência conquistada com a renda, a família também ganha investimentos melhores. “Quando a mulher tem autonomia sobre a renda, ela investe muito mais em educação, em saúde, na questão da segurança alimentar, então os investimentos da mulher estão mais pautados pelos interesses da família. Enquanto com o homem é celular, moto. Isso foi observado em pesquisas no mundo inteiro, não só no Brasil”, argumenta.

Ela alerta para a importância da formação dessas mulheres. “É preciso que se invista também em formação política dessa mulher, que elas tenham consciência dos direitos que elas têm como cidadãs, e que elas passem a reverter esse quadro de dependência dos maridos. Todo o movimento feminista busca exatamente isso”.

Renda contra a seca – As palavras autonomia e independência também não saem da boca de Maria Clara Silva dos Santos, de 52 anos. Moradora de Inhapi, sertão de Alagoas, Maria do Barraco, como é conhecida na cidade, não perde a oportunidade de falar sobre os benefícios da renda própria para outras mulheres. “Tenho incentivado outras mulheres: nós podemos ter outra fonte de renda. Não podemos nos acomodar”, diz a sertaneja, que também faz parte do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais.

Maria do Barraco conta que a renda era incerta, já que vivia da roça. Se a seca se prolongasse, nada feito. O complemento vinha de doces que fabricava, mas que eram insuficientes para uma casa com oito filhos. Ao ser incluída no programa Bolsa Família, ela diz que conseguiu o recurso para dar início ao próprio negócio.

“Comprei um fogão industrial com o dinheiro. Parcelei o máximo que pude, o dono da loja também me ajudou muito com isso, e fui pagando as prestações com o Bolsa. Quando comecei nem prato eu tinha, hoje tenho cozinha montada, tudo do jeito que a vigilância sanitária pede”, conta, orgulhosa.

Maria do Barraco formalizou uma empresa para vender quentinhas. E já não precisa mais do Bolsa Família para viver. “Eu fiz questão de entregar. Foi por amor. Tem gente no município que precisa mais, já dá para eu sobreviver”, justifica a empreendedora ao revelar que pediu voluntariamente para sair do programa.

Este ano os contratos estão mais raros, então ela complementa a renda fazendo comida e produtos da roça para vender na feira da cidade, todo domingo. Também cultiva um pomar em um sítio de 3 hectares do qual é dona. “O cartão [do Bolsa Família] não só dá o dinheiro. Pode conseguir cisterna, por exemplo, como foi o meu caso. Hoje eu planto fruteiras. Na seca não morreram todas por causa da cisterna. Compro água e coloco nela. Cajueiro, acerola, tudo eu tenho por causa disso”.

Dos oito filhos de Maria, seis já se formaram e tem curso superior. Ela mesma voltou a estudar, “para viver melhor nesse mundo da internet”, e cursa a Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Eu não consigo ficar parada. A gente não pode se acomodar. Eu quero é mais”.

Geração independente – No sertão nordestino, a renda fixa proporcionada pelo Bolsa Família provoca mudanças ainda mais profundas para a mulher. Combate, indiretamente, a desigualdade de gênero, termo traduzido na vida das sertanejas como trabalho análogo à escravidão, violência doméstica, invisibilidade e falta de vida social.

Essas histórias são contadas por mulheres de Guaribas, município do agreste do Piauí, por meio do olhar – e das lentes – da cineasta Eliza Capai no documentário No devagar depressa dos tempos. Histórias de humilhação e miséria, mas também de esperança nas novas gerações. De ruptura de um pensamento que, de tão comum, era naturalizado pelas moradoras: que a vida gire em torno do marido.

“Me interessei pelo tema quando conheci o livro Vozes do Bolsa Família. Para escolher a cidade tentei vários parâmetros; baixo IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], por exemplo. Até que cheguei a Guaribas, que foi a cidade piloto para a implantação do Bolsa Família, e que já teve o segundo pior IDH do Brasil”, explica a jornalista.

Depois de duas semanas em campo, Eliza expôs um modo de organização da família de da sociedade, no município, em que o homem estava no centro da vida das moradoras. “É o gigante da mulher”, como expressa Horacio Alves da Rocha, o único homem entrevistado no documentário.

Isso tudo em um contexto de fome e de trabalho não remunerado, de dedicação completa à sobrevivência miserável do cotidiano. “O que mais me emocionou foi quando eu olhava as mulheres que tinham a minha idade, 30 e poucos anos, que falavam da escravidão como presente. Eu vivi a escravidão – essa é uma frase que escutei várias vezes. E até hoje – agora que eu acabei de repetir – eu me arrepio. Porque é muito cruel a gente se deparar com isso. No Brasil a escravidão é presente. Na minha geração isso se vive. Mulheres com corpos de escravidão, de que passaram fome”, lembra a cineasta.

Quando o registro foi feito, no entanto, um embrião da mudança de condições de vida e da opressão de gênero começava a crescer. De acordo com as entrevistadas, o Bolsa Família havia dado o poder de decisão e de compra para as sertanejas. Havia dado a oportunidade de se livrar de uma situação de violência. E havia criado uma geração inteiramente nova. As que sonham em ser solteiras.

“Todas elas falaram que não querem casar. Muito provavelmente elas vão casar quando crescerem. Mas o ideal de vida delas pode não estar atrelado a um bom casamento. Elas não tem um sonho de pegar um bom marido, tem o sonho de estudar, de independência. Imagina os filhos dessas mulheres como vão ser”, se emociona Eliza, falando sobre as meninas que aparecem no documentário.

Essas crianças são beneficiadas pelas exigências que o Bolsa Família faz aos pais. É preciso garantir, em resumo, saúde e escola aos filhos: que frequentem as aulas sem extrapolar o número máximo de faltas e que o acompanhamento médico e de vacinas esteja em dia. “As filhas delas vivem uma infância absolutamente diferente. Não trabalham, vão à escola, têm acesso médico. E comem. Tem mil problemas? Tem. Tem muito para ser melhorado. R$ 75 é muito pouco, mas é o primeiro passo”, defende a cineasta.

De acordo com a secretária-adjunta de Renda e Cidadania do MDS, Letícia Bartholo, algumas condições ajudam a estabelecer situações mais igualitárias entre homens e mulheres.

“Uma criança que tem acesso a mais consumo vai poder se alimentar melhor. Uma criança que se alimenta melhor vai poder estudar mais. Uma criança que estuda mais vai ter outros sonhos. Uma criança que tem outros sonhos passa a questionar inclusive sobre padrões de gênero. Nesse sentido a gente pode dizer que o Bolsa Família, por melhorar as condições de vida, amplia as perspectivas e sonhos que estão postos para essas mulheres. Elas podem sonhar mais, querer mais”.

“Quando ela poderia se permitir o luxo de se livrar de um marido violento, desrespeitoso, quando não tinha renda? Jamais”, reforça a cineasta.

De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de famílias chefiadas por mulheres cresceu. Em 2000, 1,19 milhão de famílias com rendimento de até meio salário mínimo eram chefiadas por mulheres. Em 2010 eram 2,68 milhões, mais que o dobro.

Dinheiro e decisão – Atualmente, das 13,9 milhões de famílias que recebem o benefício do Bolsa Família, 92,1% tem mulheres como responsáveis por receber o benefício.

Uma das razões do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para essa escolha é a destinação do dinheiro. O padrão de consumo entre homens e mulheres é diferente. As beneficiárias tendem a comprar mais artigos voltados para os filhos, como alimentos e material escolar.

Além disso, estudos encomendados pelo ministério indicaram outros benefícios indiretos dessa escolha.

“Pelo que as pesquisas nos indicam, contribui que as mulheres ganhem na tomada de decisões sobre uso dos recursos, dentro do espaço doméstico, e notamos também, pela segunda avaliação de impacto do Bolsa Família, que houve aumento, inclusive, do acesso a métodos anticoncepcionais. Isso indica que o Bolsa Família está contribuindo para que as mulheres exerçam seus direitos reprodutivos. Porque a decisão sobre quantos filhos você quer ter e quando você quer ter esses filhos é um direito fundamental para que a mulher seja dona do próprio corpo”, revela a secretária-adjunta de Renda e Cidadania do MDS, Letícia Bartholo. “Também temos pesquisas qualitativas que indicam que as mulheres criem mais laços na comunidade e que fiquem menos sujeitas a relações domésticas que impliquem em sujeição e violência”.

O desejo de empreender também é uma constante entre as beneficiárias. Dados do MDS de junho de 2015 mostram que 703,4 mil mulheres do Cadastro Único do governo federal (onde são registradas as pessoas abaixo da linha de pobreza, para que tenham acesso a programas sociais) se tornaram microempreendedoras individuais, uma modalidade mais simples de formalização do negócio. Desse total, 288,9 mil mulheres são beneficiárias do Bolsa Família.

O desafio, também, é fazer com que a divisão dos cuidados com os filhos e as tarefas domésticas sejam melhor divididas. Em muitos lares, quando a mulher passa a gerar renda, acumula também o trabalho da casa. “Isso também traz pra gente um desafio de aproximar os homens dessa responsabilidade de cuidar. Como as políticas de proteção social podem fazer para que os homens se tornem mais partícipes da atividade de cuidar, e também das atividades pelas quais as mulheres são majoritariamente responsáveis também no ambiente doméstico. Nosso exercício agora é caminhar nessa direção”, avalia Letícia Bartholo.

Agência Brasil

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