Notibras

A agradável noite em que encontrei Ascenso Ferreira

Até hoje não sei se foi sonho ou realidade. Ou mesmo se foi ele quem sonhou, ou fui eu. O fato é que foi ligeiro, na terra em que me sentia estrangeiro, sem nenhum lugar para chamar de meu.

Eu me encontrava no Recife, à beira do Capibaribe, a pensar como tal rio, caudaloso e frio, nascido na serra do Jacarará, na lonjura do Poção, vinha descendo até o Beberibe encontrar, próximo ao Palácio do Campo das Princesas, depois de beijar os quarenta e dois municípios que banhava, para na foz desaguar.

E pensava comigo, meio compungido, se eu era mesmo poeta ou se apenas me iludia, pois fazia uns versos que, mostrados a um amigo, ele dizia: “esses vieram a calhar”.

Segui adiante até me cansar da pândega e, em frente ao Cais da Alfândega, procurei me sentar, por ali gastar um tempo a pensar. Apreciava a noite estrelada, tão silenciosa, tão mansa, a hora custava a passar.

Foi quando notei um vulto perto de mim. Vulto ou pessoa, fiquei na dúvida. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, era corpulento, largo e usava um chapéu de abas bem grandes. Não o reconheci. Ele se acercou. Seus olhos, furtivamente cruzados com os meus, se detiveram e pareciam me interrogar. Eu o saudei: “boa noite, cavalheiro.”

E ele me respondeu com um vozeirão e fala bem pernambucana: “boa noite.”

“O que andas fazendo a essas horas nessas paragens?”, indaguei.

E ele me explicou: “estou aqui apreciando a noite, essa noite de luar, sobre este Capibaribe que serpenteia pelo velho Recife, em busca do oceânico abraço onde ele vai deitar no mar”.

Aquela voz arrebatadora, o chapelão curioso, o jeito de falar, não era possível, até me lembrou uma pessoa, mas não podia ser. Ele morrera muitos anos antes de eu nascer…

“Ascenso Ferreira!”, eu falei, quase sem querer. E ouvi:

“Sou eu mesmo e estou aqui, para o que quiser saber. Pode me perguntar. Não tenha receio de nada, vou lhe orientar.”

Eram tantas perguntas a fazer. Difícil até de escolher por onde começar. Seria mesmo poeta como eu queria ser? Ou tinha lira estragada, a mesma coisa que nada? Que seria de mim no futuro, um escritor nascituro? Deveria continuar a traçar minhas linhas, ou recuar?

Depois de tantas perguntas que lhe fiz, alguns instantes de silêncio se passaram. O velho poeta ficou apreciando o horizonte noturno, a brisa mansa, a claridade do luar que refletia nas águas escuras do rio e todo aquele mistério no ar, até começar a falar:

“Meu jovem, vou lhe dizer… ser poeta é escolha diária, um jeito de ver o mundo, uma forma de viver. Insista, insista sempre, nunca deixe de versejar. Jamais pare de escrever. Escreva se está contente, escreva se está em dúvida ou mesmo se quiser chorar. Vá escrevendo até morrer. E se acontecer de jamais ser conhecido, se ninguém o tiver lido, nunca publicar, se nenhum leitor alcançar, continue escrevendo assim mesmo, como uma forma genuína de se expressar.”

Fiquei bem satisfeito com a resposta que ele me deu. Certamente foi de jeito para que eu, antes contrafeito, saiba doravante dar mais valor ao que tenho escrito, ao que tenho feito.

Mas como antes dizia, nunca pude afirmar se foi sonho ou realidade minha, se encontrei o grande Ascenso acordado, ou enquanto eu já dormia. Se à beira do Capibaribe debaixo do céu estrelado, na cidade de Recife, ou se o vi aqui mesmo, no Rio de Janeiro, na escuridão do meu quarto.

…….

A Verdade nos Seres, livro de poemas do Daniel Marchi, pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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