Reis magos
A busca por novas cores no mundo nos aproxima dos deuses
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emJuro que não sei como este texto deu as caras. Ou melhor, sei: eu estava dormindo, acordei de repente e ele pintou. Voltei a dormir, mas ele permaneceu acordado, me chamando pra escrevê-lo. O que não consigo explicar é essa primeira (talvez única) incursão no gênero parábola.
Sei que estou em muito boa companhia – com destaque para um galileu chamado Jesus –, mas sou ateu e, até agora, tinha escrito um romance, dezenas de fábulas e centenas de contos. Mas, como já observei, qualquer
prazer me diverte, todos os visitantes são bem-vindos. Então, lá vai.
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Uma mulher costumava vestir os filhos com fantasias orientais, no período natalino, e os chamava de “meus três reis magos”. Certo dia, pouco antes do período de festas, ela os procurou por toda a casa, e nada, nenhum rei mago. Chorou muito, olhou fundo no rosto de cada membro da família, até das filhas e dos adultos, e não viu coisa alguma.
Naquele ano, não houve celebração.
No Natal seguinte, a mesma coisa. Mas os familiares a ouviram se queixar, em prantos:
– Meu Deus, onde estão meus três reis magos? Foram embora para sempre, nunca mais vou vê-los!
O filho mais velho, que recém-completara 14 anos, aproximou-se da mãe, abraçou-a carinhosamente, e falou:
– Mãe, éramos nós, seus filhos, que a senhora vestia de reis magos, no Natal. Só que crescemos, somos adolescentes, estamos todos os três no ensino fundamental, não faz mais sentido nos fantasiar. Mas continuamos a amá-la muito.
A mulher fungou, meio que consolada. Mas o Natal familiar nunca mais foi o mesmo.
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A parábola é esta. Agora, a interpretação.
A primeira vai agradar aos conservadores – em especial aos conservadores políticos e religiosos, mas também aos presentes nos meus arraiais à esquerda. Pode ser traduzida por uma série de lugares comuns, do tipo: “As coisas são assim, é inevitável, tudo muda, fazer o quê?”.
Mas há outra interpretação.
A mulher não delirava, sabia que eram seus filhos que vestia de reis magos, mas percebeu que, naquele Natal, algo havia se perdido. A magia se fora, não havia mais o deslumbramento, o encanto de reencenar o episódio do Novo Testamento. Por isso olhou bem nos olhos de cada parente, em busca de uma centelha, uma faísca de algo sobrenatural, e deparou-se apenas com o desencanto das coisas – tarefas a cumprir, rotinas assim. Daí sua tristeza sem nome.
Pois ir em busca da magia dá novas cores ao mundo, torna-o mais vibrante, e nos aproxima dos deuses.