Memórias perdidas
A busca por um bálsamo após a confissão da morte da amante

“A maior parte da nossa memória está fora de nós”. (Marcel Proust)
…………..
Ele caminhava a esmo pelas ruas, passo a passo, sem saber seu nome, sem saber quem era, sem saber por que vagava. Percebia apenas que era um homem, estava vivo e muito cansado de tanto andar.
De súbito, avistou um frasco brilhante. Pegou-o, sacudiu-o, não havia líquido dentro dele, parecia vazio. Ele o abriu, e uma espécie de vapor chegou a suas narinas. Aspirou-o e – madeleine proustiana sob forma gasosa – começou a recordar.
Sabia agora seu nome, Ernani, e sua idade, 38 anos. Mas não por que vagava. Seguiu em frente, as energias recobradas pelo começo do lembrar.
Tinha agora um objetivo, encontrar outros frascos, recuperar outras memórias. Apertou o passo e, não muito distante, o brilho de outro recipiente o atraiu. Ele o pegou, abriu, aspirou o gás – e um nome de mulher surgiu em sua mente.
Sílvia, o amor de sua vida. Morava no bairro xxx, não por acaso estava indo em sua direção. Mas qual a história dos dois? Ainda estavam juntos?
Ao encontrá-la, seria recebido com as carícias com que se recebe um amante, ou com a frieza de quem se depara com um ex-namorado a quem não se quer mais? Não tinha respostas, mas talvez o vapor contido em outros vasilhames pudesse trazê-las.
Enquanto caminhava, esforçou-se em recuperar sua trajetória ao lado de Sílvia. Pela tristeza que tomou conta dele, sentiu que não estavam mais juntos. O amor em seu peito, porém, permanecia vivo. Seria possível reconquistá-la, retomar o relacionamento? Não sabia, precisava de mais lembranças.
Ao se aproximar da casa de Sílvia, vislumbrou outro frasco caído por terra. Abriu-o, aspirou o vapor – e as dolorosas memórias regressaram todas. Recordou com dilacerante clareza a briga provocada por seu ciúme, a troca de ofensas e bofetadas, a facada que a deixara por terra.
Lembrou-se de que fugira, e a cada passo suas lembranças se esvaneciam, tornavam-se vapor – mas bem diferente do que havia aspirado. Sabia agora que o esquecimento pode ser uma bênção. Porque certas recordações são lancinantes, doem tanto quanto uma punhalada, e por mais tempo, sem que a morte venha trazer o alívio encontrado por quem deixou este mundo.
Continuou a andar, mas não para a residência da amada, de sua vítima.
Dirigiu-se a uma delegacia de polícia próxima. Iria entregar-se, confessar o crime cometido, era a coisa certa a fazer. E rezar para que, quando estivesse no cárcere, o esquecimento tornasse a inundar seu espírito, como um bálsamo.
