A Entrevista, um besteirol que só faz rir quem não sabe viver
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emCausaria espanto se o conteúdo insípido do filme A Entrevista pudesse, por si só, de fato causar um incidente internacional grave entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Não é surpresa que quase tenha se transformado num ícone patriótico, como ameaçou ocorrer.
Se muito, A Entrevista entrará para a história como um daqueles filmes em que os fatos que o cercam são mais interessantes do que seus méritos de fato. A história dos dois jornalistas que viajam para a Coreia do Norte para entrevistar ― e assassinar ― o ditador King Jong-un tomou os noticiários em junho, quando a distribuidora americana sofreu ameaças de “ações implacáveis” contra os EUA caso o filme fosse lançado. Decidiu, então, adiar a estreia e alterar digitalmente as imagens gravadas.
O grande desenvolvimento na história viria em novembro, quando um grupo de hackers invadiu o sistema da Sony Pictures, vazou outros longas e divulgou informações confidenciais, exigindo o cancelamento do filme “terrorista”. Em dezembro, vieram ameaças de ataques terroristas que levaram inúmeros cinemas americanos a cancelar sua exibição e a Sony a dizer que não tinha planos de lançá-los. No Natal, porém, o título foi disponibilizado na internet e em salas dos EUA. Não há data para chegar ao Brasil.
Para especialistas, nunca apareceram provas irrefutáveis de que a Coreia do Norte estivesse de fato por trás dos ataques, e a despeito dos muitos especialistas que o afirmaram, o presidente Barack Obama reiterou a versão numa coletiva de imprensa em que prometeu “retaliações”. A possibilidade de um conflito, mesmo que iniciado por motivos triviais, foi logo agarrada na cobertura de veículos locais que não raro dispensam questionar pronunciamentos oficiais da Casa Branca. Então, os Estados Unidos anunciaram novas sanções à Coreia do Norte por conta dos ataques.
Por trás das ameaças dos hackers, estava a noção de que o ditador norte-coreano da vida real pudesse ter se enfurecido de tal forma com sua versão fictícia que estaria disposto a criar um conflito internacional para que ela nunca visse a luz do dia. Mas, de certa maneira, Kim Jong-un nunca foi retratado de fato no longa. Ao contrário, parece apenas emprestar o nome a alguma fantasia norte-americana do que seria um vilão oriental.
Diante de todo o prólogo, americanos foram à estreia especial com bandeiras do país, num ato político, como se A Entrevista representasse algum tipo de ato patriótico contra o terrorismo no mundo. Não representa. Nem sequer pode ser considerado uma sátira como outras comédias que se debruçaram sobre regimes políticos de diferentes épocas. Antes, visa um público-alvo que, em sua maioria, nem sequer saberia apontar a Coreia do Norte num mapa.
Passada a onda patriótica e as ameaças dos especialistas do telejornalismo, o filme foi destroçado pela crítica e é, hoje, pré-candidato ao Framboesa de Ouro, que todos os anos premia os piores produtos da indústria.
São tantos e tão flagrantes as concepções equivocadas acerca da política internacional em A Entrevista que o roteiro beira o fiasco, a irrealidade. O personagem de Seth Rogen é o produtor de um programa de entrevistas de celebridades. Ressente-se do fato de não ser capaz de trabalhar com jornalismo sério, como seus colegas de faculdade. O tempo irá mostrar que a verdade é que ele não é capaz de tanto.
Seu parceiro é o apresentador ingênuo e bem intencionado vivido por James Franco. Juntos, eles colocam no ar uma atração que explora estereótipos e humor rasteiro. É assim que, por exemplo, o rapper Eminem justifica suas letras sempre marcadas por ódio: era gay o tempo todo.
Visto que o ditador norte-coreano é um improvável fã do programa, a dupla cruza o mundo para encontrá-lo, que é onde entra a CIA. A agência decide que os dois são os mais qualificados para livrar o mundo desse mal. Quando desembarcam, conhecem um Kim Jong-un que se mostra um americanófilo enrustido. É fã da cantora Katy Perry, de basquete e de carros importados ― para Hollywood, nem o inimigo pode ser comunista, ainda que na ficção.
Como para o produtor médio do cinema americano a vida não se pinta com sutilezas, o humor de A Entrevista é um apanhado de bizarrices, escatologia, desencontros óbvios e muitas, demasiadas referências à região anal. E só.
Para a Coreia do Norte fictícia, não há plano de transição de governos ou qualquer tipo de cooperação internacional: a democracia terá de nascer por conta própria, ao raiar de um novo dia, sob fogos de artifício. O tipo de ilusão que não pode, em momento algum, ser levada a sério, e que mostra um roteiro inspirado numa extensa pesquisa num feed do Twitter e nos chavões dos comentários de mais baixo nível da internet.
Não se pode dizer que a falta de compromisso com a realidade seja, neste caso, uma boa fórmula para o humor. Muito menos que o filme se enquadre de fato na categoria “comédia” ― que exige graça. A Entrevista é um besteirol que em nenhum momento se leva ou se presta a ser levado a sério. A estranheza nasce do fato de ter sido levado por tantos durante tanto tempo.
Clarice Cardoso