Quase nada
‘A época em que tinha compulsão por notícias nas redes sociais’

1
Saiu de casa por falta d´água. Jamais voltou após o temporal.
Apesar de não acreditar na meteorologia, o homem pensou em capas de chuva e coisas do gênero. Não houve tempo. Morreu afogado no bueiro da esquina.
Valia tudo: esportes, variedades, economia, horóscopo, quadrinhos, coluna social e até política. Tudo!…tudo menos as notícias sobre enchentes, vendavais e maremotos.
Mas, porque o homem não estava de guarda-chuva? Nem mesmo uma capa? É inadmissível a insanidade de sair de casa em meio a um dilúvio sem nenhuma proteção. A vida não respeita desleixos.
“O anjo da morte está com a espada sempre pronta para a justiça dos céus”, lera em um almanaque pego na farmácia do Mendes. Tudo ou nada, não o mais ou menos.
Naquela época, eu tinha verdadeira compulsão por notícias nas redes sociais. Mas como esquecer aquelas perguntas:
E se não estourara nenhuma adutora?
E se não rompera nenhum tubo de interligação com esse lado esquecido da cidade?
E se não houvera nenhum anúncio -mesmo que fake- explodindo no celular/palma da mão?
E se não bastara a solidão de estar ilhado na própria casa por anos e anos naquela espera hipnótica?
Naquela época, eu tinha verdadeira compulsão por notícias nas redes sociais.
2
– Podes sair seu imprestável! Afinal, chegou o dia de enfrentares a rua. – gritaria a mulher, após vinte e um anos de casados no civil e no religioso.
– Só tenho pai pra isso mesmo! Pra ficar trancado no quartinho de cima com o celular na mão fissurado em notícia e besteiras na internet…cara porco…nem banho toma há meses…abre aí pai!-, gritaria o filho único, após vinte e um minutos de fortes pancadas na porta intransponível do sótão. Era o sinal decisivo.
3
Encontrei o molho de chaves e, trêmulo, escolhi aquela que me levaria ao imponderável. Naquela época, eu tinha verdadeira compulsão por notícias na internet, mas também horror por histórias de náufragos, ilhados e afogados. Apesar de tudo, a compulsão por histórias e desejo de aprender a nadar me lançariam rumo ao mergulho final. Abri a porta e encarei a rua.
4
“Minha eterna gratidão àquele que retirou meu corpo das águas libertadoras, pois ele será um cúmplice fiel de meu banho há vinte e um anos interrompido”. – mandaria escrever, Damaris -minha fiel esposa-, na lápide de meu túmulo numa justa homenagem ao bombeiro que me encontrara.
Como já é de conhecimento geral, naquela época, eu tinha verdadeira compulsão por notícias nas redes sociais.
Na manhã seguinte, eu emplacaria em todas as mídias virtuais com a fake news recordista de likes dos últimos vinte e um anos de implantação da www.
Hoje, já não tenho compulsões por quase nada.
