Santos e orixás
A história de Dona Bibi, que deixou São Jorge e Ogum confusos
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emO Rio Grande do Sul é estranho. A começar pela fala. No Norte e no Nordeste usa-se “Tu foste”, no Sudeste, “Você foi”, e nos pampas, numa síntese nada dialética, “Tu foi”. (É uma maldade sem nome insinuar que gaúcho bêbado, ou gaúcho pernóstico, para impressionar seus vizinhos brasileiros, diz “Você foste”.)
Em segundo lugar, pela forte presença cultural africana em meio a um poder de descendentes de italianos, alemães, eslavos, ibéricos e, vá lá, brasileiros. Muita gente ignora que o Rio Grande do Sul, com o batuque, é um dos polos das religiões afro-brasileiras, ao lado do Maranhão (vodum), Pernambuco (xangô), Bahia (candomblé jêje-nagô) e Rio de Janeiro (candomblé de Angola). E o polo sulista fica longe da África barbaridade!
Mais ainda, a bagualândia é a terra do axé, o estado brasileiro em que há mais adeptos declarados do candomblé e da umbanda. E não é como na Bahia, em que até mães de santo se dizem católicas; no Rio Grande, a moçada ou é católica, ou evangélica, ou ortodoxa, ou devota dos orixás e caboclos. Sem misturar as coisas.
Não muito, pelo menos.
…………..
Bibiana, dona Bibi, 82 anos, era uma dessas gaúchas que misturavam as coisas. Mas com parcimônia e olho clínico, mesclando cuidadosamente santos e orixás – e juntando alguns espíritos de luz do kardecismo para dar liga – de modo a obter o maior retorno possível de sua religiosidade pessoal.
Antes mesmo do raiar do dia, Bibiana se ajoelhava diante do altar do seu quarto, com imagens católicas e do candomblé, e apresentava aos representados os aperreios familiares. Depois, ficava à espera de uma mensagem. Quando esta demorava, investia:
– E aí São Jorge, tu não vai dizer nada? Capaz!
Aí mudava de interlocutor:
– Fala, Ogum, me explica o que fazer, tchê.
E quando não obtinha resposta, explodia:
– Bah, o bagual resolveu ficar mudo? Já pro castigo – e colocava a imagem com os chifres voltados para a parede.
Em seguida, descia para o chimarrão com a filharada e a netaiada, a casa estava sempre cheia. Enquanto a cuia rodava de mão em mão, ela decretava o que fazer. Os conselhos do além eram a cereja; o bolo era a sua experiência de vida. E, na maioria dos casos, o aperreio logo ficava para trás.
Certo dia, Bibiana abriu os trabalhos com uma advertência:
– São Jorge, Ogum, minha netinha tá precisando de ajuda. E rápido. Se não, já sabem… castigo!
No astral, o santo e o orixá se entreolharam.
– Vai sobrar pra nós – disse Ogum. – Tô com saco cheio de ver minha imagem voltada pra parede. Acho que você também. Sabe, tô pensando em dar um susto na velha.
– Boa ideia – concordou São Jorge. – Partiu Porto Alegre!
Mas dona Bibi não ficou assustada com a dupla materialização em seu quarto, sempre vira São Jorge e Ogum como pessoas vivas, de carne e osso, com quem conversava.
– Que bom que vieram! – exclamou. – Minha netinha está com um problema. A prenda andou se fresqueando com um peão no bolicho e…
Peão? Bolicho? A divindade e o santo acharam estranho, sabiam que as netas de dona Bibi eram urbanas até a medula. O africano perguntou o nome da moça, a avó disse, ele voou para investigar. Voltou uns dois segundos depois, nem deu pra notar sua ausência.
– … e agora o bagual tá fazendo ela chorar. Bah!
– Olha, dona Bibi, verifiquei. A netinha é mulher feita, tem 25 anos…
– É isso. Uma menininha – insistiu a avó.
– … e o cara é um escritor. Bem mais velho que ela, aliás.
– Escritor gaúcho… Bah! – escarneceu a velha. – Escritor gaúcho bom, só o Erico, de O tempo e o vento, que criou uma personagem chamada Bibiana, sempre me identifiquei com a minha xará – Tomou fôlego e prosseguiu. – Dizem que o piá dele, um tal de Luiz Fernando, também escreve bem. Não posso garantir, nunca li.
– Mas o que aconteceu? – perguntou são Jorge.
– Não sei os detalhes, mas minha menininha tem chorado por causa desse peão – e continuou rápido. – Já sei, não é peão, é escritor, tudo igual. O gaúcho gosta do pingo, do cusco, da gaita, da china e da prenda, nessa ordem. Minha netinha é a prenda.
– Ah, problemas amorosos – disse o santo – e traduziu para o deus do candomblé a ordem das preferências gauchescas: o cavalo, o cachorro, o acordeão, a mulher pra transar e a moça pra casar. Em seguida, perguntou a dona Bibi o que deveriam fazer.
– Bah, façam o que acharem melhor – e, num tom inflexível. – Eu, por mim, cortava o mal pela raiz.
Na mesma noite, um escritor devasso de Porto Alegre levou uma lançada de São Jorge pelo rabo que lhe dilacerou a próstata, enquanto as ferramentas de ferro do senhor Ogum lhe removiam os testículos. Tudo no plano astral, é claro; mas o efeito no corpo do vivente foi uma moleza ampla, geral e irrestrita.