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Monstros e deuses

A infância abre as portas da vida para vencer ou cair em pé

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

“Mas a característica dessa idade ridícula que eu atravessava (…) é que (…) a tranquilidade é coisa desconhecida, pois estamos sempre cercados de monstros e deuses.” Marcel Proust, Nomes de terras: a terra, segunda parte de À sombra das raparigas em flor, segundo livro de Em busca do tempo perdido.

Eles eram jovens, a idade dos guerreiros, o tempo em que se vive cercado de monstros e deuses. Um troiano e um aqueu – antepassado dos gregos – decididos a lutar até a morte. O cenário, as praias da Ásia Menor banhadas pela tálassa, designação grega para o mar Mediterrâneo. Não muito longe, para o interior, viam-se as fortes muralhas de Ílion, também conhecida como Troia, cujo nome original seria imortalizado pelo bardo Homero na Ilíada.

Armados de lança, espada e escudo, o troiano e o aqueu correram pela areia, um em direção ao outro. No confronto, as lanças se quebraram, as espadas tiveram o gume embotado, os escudos se fenderam. Sem fôlego para continuar a luta, pediram o auxílio de seus deuses e seus monstros.

De imediato materializaram-se duas mantícoras, monstruosidades greco-asiáticas. Idênticas, impossível distinguir a aqueia da troiana.

Suas três fileiras de dentes de tubarão, incrustados em cabeças humanas, dilaceraram o corpo de leão do adversário, mas não o suficiente para matá-lo.

Também se manifestaram divindades protetoras dos antagonistas na Guerra de Troia. O poderoso Ares, deus da guerra, filho de Zeus, em apoio ao guerreiro troiano, e Poseidon, senhor dos mares, irmão do deus supremo, em auxílio ao combatente aqueu. O choque foi violento, o ícor, sangue divino, tingiu de dourado as areias junto à tálassa. Mas, na verdade, os deuses não se enfrentaram até a morte – talvez por serem tio e sobrinho, talvez por conhecerem o desfecho da guerra por Ílion e daquele combate na praia, talvez por serem imortais.

Vendo que seus auxiliares de pouco lhes valiam, os dois guerreiros, exaustos, decidiram interromper a luta e retomá-la na manhã seguinte.

Dessa vez, porém, não recorreram a monstros e deuses, não adiantava muito; enfrentaram-se com armas humanas, sem recorrer a poderes sobrenaturais, até caírem por terra.

Quase 3 mil anos depois, o sociólogo alemão Max Weber cunhou o conceito de “desencantamento do mundo”. Ele se referia às forças poderosas da religião – que foi roubando terreno à magia – e da ciência, cujas investigações transformam a realidade em um mecanismo causal. Talvez um dos momentos iniciais desse processo tenha ocorrido no duelo entre os dois jovens, nas areias perto de Ílion.

Contemporâneo de Weber, o romancista francês Marcel Proust sustenta outra opinião. Profundo estudioso do psiquismo, o autor de Em busca do tempo perdido acredita que, na juventude, estamos sempre cercados de monstros e deuses. A rigor, o processo se inicia na infância, quando monstruosidades se escondem nos armários ou em baixo da cama; e segue até o fim da adolescência, quando, bem ou mal, já sabemos lidar com essas entidades.

E então, no coração e na mente de cada moça, de cada rapaz, os desejos afloram, os sonhos renascem, vívidos, o mundo se reencanta, tingido de cores fortes e luminosas. Cada geração devolve, ainda que por pouco tempo, algum encanto à sombria realidade que a envolve.

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