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A liberdade das ideias na versão icônica de Aílton Graça

Foto/Divulgação

Enquanto o ator Aílton Graça se preparava para apresentação de um espetáculo amador no Hospital do Servidor, o diretor da atividade pediu ao elenco que buscasse todos os pacientes para assistir à peça. Graça ouviu a solicitação e, em instantes, trouxe pessoas em macas, em cadeiras de rodas e com bolsas de soro penduradas. “Fizemos até ‘O Doente Imaginário’, de Molière. Fiquei intrigado com o título a acabou virando assunto em todo o hospital.”

Em cartaz no Sesc Ipiranga com Diálogo Noturno com Um Homem Vil, o paulistano que interpreta um escritor perseguido pelo governo fala sobre sua carreira e novos projetos, como o de viver o trapalhão Mussum nas telonas.

Espaços como escolas e hospitais foram o berço da experiência cênica, ainda amadora, de Graça. O sucesso de personagens na televisão como o Feitosa de América e a querida Xana em Império foi plantado nesse convívio artístico e social. “No começo era tudo muito intuitivo. A gente fazia e o público se divertia. Não havia muito rigor com ensaios, mas tinha um compromisso em criar algo.”

Na peça em cartaz, o personagem de Graça será vítima de suas criações e ideias, consideradas contrárias ao governo, no texto do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt. Numa noite, um carrasco (Celso Frateschi) é enviado à casa do escritor, e antes da execução, ambos discutem sobre liberdade e justiça. “É uma peça que vem num momento sombrio e cheio de mudanças no Brasil”, afirma Graça. Para o diretor Roberto Lage, que estreou o mesmo texto em 1988, a realidade de um governo que dá ordens para executar uma figura que luta contra a injustiça não está longe do Brasil e do resto do mundo. “Há questões sociais que lá atrás não conseguimos resolver. Hoje o conservadorismo retorna. Mesmo assim estamos de acordo com a cena mundial. Não somos uma Venezuela, por exemplo.”

Graça conta sobre o entusiasmo de contracenar com Frateschi, a quem chama de “professor”. “Ele não gosta muito quando chamo ele assim”, brinca. “Quando o conheci, percebi que além de artista, ele tinha uma postura cidadã que me interessa muito.” Já com o diretor, Graça afirma que perdeu as contas de quantas vezes assistiu a Meu Tio, o Iauaretê, com Cacá Carvalho, em 1986, sob direção de Lage. “Eu ia sempre porque sentia que havia coisas que eu precisava descobrir e aprender”, diz sobre a montagem inspirada no conto de Guimarães Rosa.

A virada profissional de Graça se deu com a maratona de estudo no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, de Antunes Filho. As aulas de atuação, cenografia, figurino e dramaturgia durante o curso o prepararam para a estreia de Xica da Silva, e os ensaios de A Hora e a Vez de Augusto Matraga e Macunaíma. As técnicas circenses aprendidas durante o período no Circo Escola Picadeiro fizeram de Graça bem mais que um ator, ao se tornar mestre-sala e coreógrafo da comissão de frente no Carnaval. “É preciso dizer que o balé popular me reconectou com as danças brasileiras, muitas delas de origem africana. Quando eu pensava num ideal de escola, o aprendizado com cultura popular e obras brasileiras sempre esteve a frente.”

A temporada de Diálogo Noturno com Um Homem Vil se divide com outros projetos em 2018. Um deles, sonho antigo de Graça. O ator vai estrelar como Antonio Carlos Gomes, conhecido por interpretar o Mussum em Os Trapalhões. O filme – ainda sem data para gravar – será dirigido por Roberto Santucci e tem roteiro de Paulo Cursino inspirado no livro Mussum Forévis – Samba, mé e Trapalhões, de Juliano Barreto. Ao falar sobre o filme, Graça não esconde a alegria de interpretar um homem que tanto lhe influenciou. “Eu comecei no Carnaval como mangueirense por causa dele,” diz. “Desde criança eu ouvia que na Mangueira havia o Palácio do Samba e falava pra minha mãe que lá era o lugar em que todos os pretinhos podiam viver juntos e ser felizes.”

Apesar de o intérprete de Mussum ganhar fama na televisão, Gomes foi diretor de harmonia da Estação Primeira de Mangueira, e um dos fundadores do grupo Os Sete Modernos, criado em 1965, e mais tarde rebatizado de Os Originais do Samba, quando Gomes deixou o conjunto para integrar o quarteto de Os Trapalhões.

Graça diz que o filme quer revelar a faceta da biografia do carioca. “Ele ensinou a família toda a ler e escrever. Foi militar e esteve presente na comunidade. Os filhos dele querem me apresentar antigos amigos e conhecidos. Creio que terei boas histórias para ouvir.” A trajetória como trapalhão não será o foco, mesmo que não seja possível fugir do humor de Mussum, tido como controverso atualmente e defendido por Graça. “Naquela época, passávamos por muitas questões mas tínhamos ícones que discutiam a negritude de modos diversos, com Abdias do Nascimento, Grande Otelo, o ator Mário Gusmão e o humor de Mussum.”

Para o ator, ainda é preciso conquistar espaços. “O negro ainda está na estrutura do folhetim como secundário. Cadê o grande médico negro?” Por outro lado, Graça afirma que o aspecto artístico deve ser a ordem e critica o novo modo de contratação de atores para projetos. “Que seja por talento artístico e não porque o ator tem milhões de seguidores nas redes sociais.”

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