Os ponteiros
A loucura vestida de lenda tem muitos lados para mostrar

Acordei.
O dia estava lindo.
Passeei pelos corredores e fui até o jardim.
Nas alamedas conversei com borboletas, passarinhos e até encontrei um jabuti. Eu me sentia ótima.
Celina passou por mim e sorriu. Sorri de volta. Assim foi toda a manhã.
A única coisa que me desagrada é a questão dos horários. Minha governanta é rígida e disciplinada. Sempre atenta ao relógio. Confesso que isso me irrita.
Gosto de liberdade, de bagunça e de confusão. Divirto-me com a cara das pessoas quando me veem viver personagens.
Algumas levam tanto a sério que correm de mim.
Ontem, por exemplo, vesti-me de padre. Passei o dia benzendo e orando pelas pobres almas que convivem comigo.
– Foi engraçado.
Violeta detestou. Ficou tão zangada que cuspiu no prato que eu estendia a hóstia para ela.
– Não sabe brincar.
Já Clara, ajoelhou-se pra mim e pedia perdão. Eu só de pirraça não perdoei, e ela correu para Celina reclamando que eu não queria perdoar os pecados dela.
Celina acostumada consolou-a prometendo que ela mesma a absolveria dos pecados.
Clara saiu feliz, dançando pelo corredor cantarolando a ave Maria.
– Não gostei. Afinal, eu, era o padre. E, só eu posso absolver.
Fiquei tão zangada que na hora do lanche joguei café na Clara que ousou sentar perto de mim.
Uma vingança gostosa, todavia reconheço que estava quente, e isso me colocou de castigo.
Lá fui eu pro quarto.
– Mas hoje o dia está lindo, e eu não vou jogar café na Clara.
Quarta – feira.
Não sei por que, mas adoro as quartas-feiras. Acho que é por causa do dia da piscina. Incrível, não é? Mas piscina só às quartas – feiras.
Coisas da Celina.
– Detesto a Celina.
Estou esperando… Uma hora, pronta. De maiô e roupão. Ainda não vieram me buscar.
A piscina pode acabar e não vou ter água bastante pra mim. Vou reclamar com papai.
Violeta bateu à porta do meu quarto. Ela também está pronta.
– Oba! O Rodrigo chegou. Vai nos levar.
O banho de piscina foi ótimo.
Ainda tinha bastante água para banhar-me.
– Ela não é funda.
Dá pra ficar de joelhos e a água bate no pescoço. Nem dá pra brincar de afogado.
– Rodrigo é chato. Não deixa brincar de afogar a Violeta.
Ela bem que gosta quando aperto o pescoço dela. Vai ficando roxa e coloca a língua de fora.
Porém, a Celina sempre está por perto e não me deixa brincar.
De todas as meninas as que mais gosto, são: Violeta, Sônia e Virgínia.
Violeta para esganar, Sônia para assustar e Virgínia, bem ela é muito legal.
No outro dia, fui passear com a Sônia. Contei para ela a história da mulher de branco. Diz a lenda que era uma mulher muito boa, mas infeliz.
O marido dela era mau, e a maltratava muito. Um dia ela conheceu um rapaz e se apaixonou. Toda a vizinhança sabia, contudo a protegia do marido. Homem rude e de maus modos.
Certa noite, o filho dela que seguia os moldes do pai, descobriu o seu affair e atocaiou os dois. O pai, num lampejo de raiva, os matou. Daí, ela vaga pela estrada em busca de perdão ou de vingança. Ainda dizem que o pai e o filho foram mortos nessa estrada quando voltavam da cidade, no meio da escuridão. Tem gente que afirma tê-la visto atacando o automóvel.
Sônia era muito impressionada. Logo começou a tremer de medo.
– Eu gostei. Continuei aterrorizando.
O vestido dela era comprido esvoaçante, seus cabelos negros desalinhados voavam no vento. Ela, ali parada, caminhava em direção aos carros com uma faca na mão. Ninguém ousava passar naquela estrada à noite. O medo da mulher de branco é real.
Sônia já esboçava um choro, e eu, continuava.
Já pensou se a mulher de branco resolve visitar você no quarto?
Sônia arregalou os olhos:
– Não. Ela só fica na estrada.
– Bem, a lenda diz isso, mas eu acho que ela pode vir a noite, entrar aqui…
– Mentira. Você está inventando.
E saiu correndo gritando pelo Rodrigo.
Naquela tarde fui chamada pelo papai. Ele me advertiu que se eu continuasse a implicar com as meninas me colocaria de castigo na sala de “conversa com eu mesma”.
É uma sala, melhor dizer um quarto onde não gosto de ficar. Então, fingi tristeza e prometi que não provocaria mais a Sônia.
– Safei-me.
AH! Deixei passar uns dias, e certa noite, todos dormiam.
Vesti o lençol e fui para o quarto da Sônia. Ela dormia.
Aproveitei para fazer barulho com a voz, como se fosse vento. Puxei o lençol e ela acordou olhando fixamente para a mulher de branco que estava diante dela. De repente, ela surtou.
Saí correndo antes que alguém me visse.
Tadinha. Levaram a Sônia para outro lugar. Não sei pra onde. Ela nunca mais voltou.
– Ah, mas restou a Violeta e a Virgínia.
Agora acordei com vontade de ser um anjo. Pedi para a Celina que queria passear nas nuvens. Ela não deixou.
– Fiquei brava.
Gritei a manhã inteira.
Papai me chamou e perguntou por que eu queria ser anjo e gritava daquele jeito. Ele disse que anjos não gritam. Parei para pensar.
– É verdade, anjos não gritam. São bonzinhos e calmos.
Ele ainda disse que se eu queria ser anjo precisava dar exemplo. Fazer coisas boas, não implicar com as meninas, ser gentil.
-Não gostei de ser anjo.
Dia de festa. Meu aniversário.
Celina e Rodrigo me acordaram com uma bandeja enfeitada com um balão a gás.
– Um balão dourado!
Amei. Tomei as pílulas de todos os dias, comi o pão e bebi o leite.
– Eles saíram.
Fiquei pensando o que faria para festejar. Lembrei-me da Virgínia. Era a mais introvertida de todas. Quase não falava.
Ficava olhando para a parede como se buscasse moscas ou lagartixas.
– Sei lá!
Resolvi ressuscitar a mulher de branco. E me fantasiei.
Olhei no corredor pra ver se estava vazio e entrei no quarto da Virgínia.
Ela estava de camisola branca transparente, seus cabelos negros soltos cobriam os ombros; de repente, percebi que estava diante da mulher de branco e surtei!
– Não me lembro do que aconteceu.
Sei que uma semana depois acordei no quarto verde.
Celina correu para avisar ao papai que eu acordara. Rodrigo também veio.
Os dois enfermeiros, me desamarraram da cama, papai como eu chamava o médico, pegou minha veia e espetou a agulha.
Num momento de lucidez, percebi que ainda ficaria por muito tempo no sanatório.
