“Elga cortou os pulsos e foi salva pelo palhaço Costelinha. Outra vez, tentou a morte invadindo a jaula dos leões: erro total”.
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O circo foi armado no terreno da igreja. A cidade, agora, teria função. “Cidades pequenas, biboquinhas de arrabaldes, coisinhas de interior, cidadezinhas de passagem”, diria a trapezista de pernas longas, magérrimas, loira oxigenada e de olhos profundamente verdes. A tabuleta do circo teatro chamaria a atenção para a atração do espetáculo:
“INCRÍVEL! INACREDITÁVEL! INIMAGINÁVEL!”
A loira fantástica girando no globo da morte com quatro motocicletas!
Elga chegara ao circo na garupa de Tony. Vieram de longe, mochilas ao vento e botas descascadas. Os anos 60 corriam soltos e com eles as trupes de comunidades beats e hippies. Cabelos ao vento e ao som de Janis Joplin, os dois dariam a medida do tom. Ficariam com a trupe desde que liberassem os chás de cogumelos e as viagens de ácido. Elga era boa de trapézio, equilibrismo, contorcionismo e principalmente dentro do Globo da Morte. Dias depois, Tony fugiu com a moto e com as mochilas. Elga cortou os pulsos e foi salva pelo palhaço Costelinha. Outra vez tentou a morte invadindo a jaula dos leões. Erro total. Os leões eram mais mansos que Tony. Apaixonou-se por eles. Elga ganhou amigos, aprendeu o ofício circense e abandonou a ideia de suicídio. Agora ela se transformara em:
“ELGA, A LOIRA DOS LEÕES NA COVA DE DANIEL”.
2
O padre procurou Artur, o dono do circo e argumentou:
– Por Deus, eu vos digo, o espetáculo é bom mas esse número da mulher na cova dos leões é algo indigno, fora dos padrões de moral da nossa religião; ela é libidinosa, passa vontades sexuais e nossas meninas não podem assistir tal libidinagem.
Artur não teve escolha. Elga, agora, seria a domadora de dragões e vampiros. E Elga foi. Encantou as criaturas e elas entravam no picadeiro e se enfiam por entre as pernas da loira; mexiam e saiam e cada vez ficavam mais alucinadas. Babavam. Entravam e ficavam impossíveis. No dia seguinte o padre voltou:
– Filho Artur, não pode isso! A moça continua um poço de libido. As criaturas são almas puras, filhas de Deus e aquela promiscuía mulher é coisa do “dito cujo”! Ela sai ou nós não renovamos o contrato e o circo vai embora. Imediatamente Elga passou a ser:
“ELGA, A LOIRA ENGULIDORA DE ESPADAS!
INCRÍVEL! INACREDITÁVEL! INIMAGINÁVEL”.
No dia seguinte, a padre voltou à carga:
– Sabe, filho, o problema é que as mulheres filhas de Maria estão protestando com o tamanho das espadas…é coisa perigosa…. ninguém engoli coisas assim…é coisa do demônio! Artur entendeu o recado. Agora Elga seria:
“LOLA, A LOIRA ENCANTADORA DE SERPENTES!”
INCRÍVEL! INACREDITÁVEL! “INIMAGINÁVEL”.
Não tardou e o padre falou em seu sermão:
– Mulher loira, com corpo exposto, coxas grossas… e ainda encantando serpentes? Parece coisa de Jezebel! É coisa de pecadora, filho… Muda este negócio aí se não nada feito!
Elga/Lola indignada deixou a cidade na madrugada levando com ela o palhaço Costelinha.
3
Anos depois, o circo de Artur retornara à cidade. O circo já era tecnológico. Mil luzes computadorizadas anunciando a atração central:
“NO GLOBO DA MORTE: ZELDA, A CIBERMULHER, COM QUATRO MOTOS ENVENENADAS.
GIRANDO NO CIBERESPAÇO A PROCURA DO PRAZER TOTAL.
INCRÍVEL! INACREDITÁVEL! INIMAGINÁVEL!”.
O padre procurou Artur e pediu discrição:
– Sabe, Filho, os tempos mudam e a gente modifica os dogmas. Eu sei que fui radical, mas o demônio também sempre o foi… Quem é esta mulher cibernética? Artur pensou, pensou e respondeu com certa ironia:
– Sabe, padre, é aquela mesma da televisão, do programa do Gugu, do Ratinho, da internet. O senhor ainda acha que é pecado?
– Não, filho, só acho que poderíamos puxar um telão digital para o salão paroquial…cobrar uns “troquinhos” para ajudar na obra da reforma da igreja… Afinal, “quem dá aos pobres empresta à Deus!!!”.
4
A cibermulher saiu da cidade após atear fogo no circo e na igreja. Jamais ninguém ouviu falar de Elga, Lola, Zelda ou qualquer mulher circense que se dispusera a ser um objeto de prazer e exploração. Na manhã seguinte a missa foi suspensa por falta de padre.
O circo seguiu em frente e, ainda hoje, há quem diga na cidade que a mulher arrancou com sua moto – e o palhaço na garupa – xingando mil pragas:
– Cidades pequenas são assim! Gentinha interesseira, jogos de circunstâncias e poder… Biboquinhas de passagem!
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*Para a minha mãe Nair/Nhá Fia