Respiração da Terra
A natureza em prosa e verso, em todas as suas formas em meras 24 horas

No amanhecer a luz nasce como uma lambida úmida no horizonte. Meu corpo desperta antes dos meus olhos — os músculos tremem, as patas reconhecem o chão frio antes mesmo de eu me erguer. O vento traz cheiros que são palavras: orvalho nas folhas de carvalho – veado macho marcando território a leste -, – geada mordendo a terra grávida -. Não penso; sinto. Sou nariz, ouvido, pelo arrepiado.
A primeira corrida é uma oração. Meus cascos batem no solo como tambores ancestrais, e a floresta responde: os pássaros dissecam minhas pegadas, os insetos tecem histórias em volta do meu rastro. Paro no alto da colina, onde o sol rasga as nuvens. Meu uivo não é som — é raiz desenterrada, semente lançada. A manhã inteira tremo com ele.
Ao meio dia o sol é uma língua de fogo lambendo meu dorso. Descanso à sombra de uma rocha coberta de musgo, onde a terra suga meu calor. Uma formiga caminha sobre meu focinho; deixo que explore. Ela fala em química, em feromônios, e eu traduzo: – Você é irmã, mesmo sem asas chega como uma maré. Caço. Meus movimentos são versos curtos e brutais: cheiro de sangue, perseguição silenciosa, dentes encontrando jugular. O veado jovem estremece, e em seus olhos vejo o reflexo da minha própria mortalidade. Como agradecimento, como ritual, enterro parte das vísceras sob uma árvore tombada. A terra merece de volta o que é dela.
Ao entardecer a floresta se transforma em altar. A luz dourada filtra-se como incenso através das copas, e o riacho canta salmos de pedra e correnteza. Bebo, e a água me conta segredos: há um lobo solitário a norte, seu cheiro é sal e ferida aberta. Decido não encontrá-lo hoje.
Deitada sobre folhas secas, observo as sombras alongarem-se. Meu corpo é mapa e bússola: cicatriz na pata dianteira (encontro com arame farpado humano), quadril levemente desalinhado (queda do penhasco no inverno passado). Cada marca é uma história escrita na carne, cada dor, um diálogo com o mundo.
Ao chegar à noite a lua surge, e com ela, a segunda pele. Meus sentidos se aguçam até doer: ouvindo o musgo crescendo, sinto a pulsação das minhocas sob o solo. Uivo novamente, e desta vez, as estrelas respondem.
Elas não piscam — cantam. Seus sons são agudos, cristalinos, e minha coluna vertebral vibra em harmonia.
Corro. Não por caça ou medo, mas porque minhas patas sabem o caminho para o centro da Terra. O vento molha meus olhos, e por um instante, sou tudo: sou a árvore que arranha o céu, sou o rio que carrega memórias de geleiras, sou o cogumelo que devora morte para gerar vida.
Quando paro, ofegante, a floresta sussurra:
– Você é minha língua, minha garganta, meu verbo feito carne.
Deito-me sobre uma pedra plana, onde o musgo desenha espirais. A noite me envolve, e pela primeira vez, percebo: Meu corpo não é meu.
É veia da montanha, é sopro do vento norte, é sílaba de um poema que a Terra repete desde que o tempo era lunar.
Durmo.
E na madrugada antes do sol, antes dos pássaros, antes de me tornar loba outra vez — sou semente.
