Para Veríssimo
A reinvenção de Ed Mort esbarra n’a Bicha de Anta Gorda
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Entre entediado e amargurado, Ed Mort tomava café frio em seu escritório localizado no centro de São Paulo – ladeado por uma fábrica de carimbos e um salão de cabeleireiro – pensando sobre como o passar do tempo tinha sido cruel com sua imagem, sua saúde e mesmo com seu talento investigativo.
Ainda preservava a singularidade e o charme paradoxal – cínico, mas romântico – que o transformaram em um personagem icônico, mas sabia perfeitamente que sua carreira de detetive e seu carisma de celebridade
estavam se aproximando do ocaso.
Interrompendo suas divagações, um homem de meia-idade entrou abruptamente no escritório sem bater na porta e, parecendo ansioso, perguntou:
– Você é o Ed?
Um tanto contrariado, o famoso detetive respondeu:
– Claro que sou… Mort, Ed Mort, está na plaqueta! Como posso ajudá-lo? Já sei, sua esposa desapareceu, não é mesmo?
– Não, não… na verdade eu não sou um cliente, respondeu o homem com um sorriso benevolente no rosto.
– Olha, me desculpe, mas não quero e nem posso comprar nada no momento.
– Na verdade, pode sim, Ed, mas não como você está pensando! Meu nome é J. Aulus e estou aqui por um motivo muito relevante e transcendente para nós dois, respondeu o homem com um ar misterioso.
Mesmo intrigado, Ed respondeu de má vontade:
– Sei, essa entrance faz parte da sua técnica de vendas, não? Sinto muito, Aulus, mas hoje você procurou o cara errado.
– Deixe-me explicar, Ed. De certa forma, sou seu colega de profissão e, mais importante que isso, sou leitor, admirador e amigo do seu criador; sou muito fã de vocês dois! Estou aqui para ajudar você a se reinventar e levá-lo de volta para o futuro, quer dizer, de volta para os bons tempos.
Perplexo, Ed só conseguiu arregalar os olhos e murmurar de forma quase desconexa:
– Como…? Você é amigo do Luís Fernando? Me reinventar, que história é esta…?
– Explico! Naturalmente você já percebeu que os tempos mudaram muito rapidamente e que os seus métodos de trabalho, sua atividade, seu microuniverso, sua história e mesmo você, como personagem, já foram ultrapassados por outros personagens, outros contextos mais interessantes e atraentes para as novas gerações, né?
Recompondo-se como podia, Ed pareceu refletir e admitiu:
– Pois é, por coincidência, eu estava justamente pensando nessas coisas antes de você entrar aqui, Aulus. Mas se você já sabe disso tudo, sabe também que não depende de mim e sim do Luís concordar contigo e me reescrever com elementos mais atuais.
– Você tem razão Ed, mas apenas em parte. Acontece que falei com o Luís e ele disse que concorda comigo, porém, qualquer mudança no teu contexto depende fundamentalmente de você também desejar mudar, evoluir e se
adaptar aos novos tempos politicamente corretos.
– Hum…isso é bem coisa dele, né? Sempre democrático, empático e humanista! Bueno, da minha parte, tudo bem. Mas no que devo começar a mudar? Roupa, alimentação, rotina, lâmina de barbear? Escritório? E como vou fazer isso? Eu estou sempre duro.
– Calma! Isso tudo faz parte sim, mas primeiro temos que decidir algumas mudanças mais estruturais e o Luís vai dar um jeito de irrigar um pouco a sua conta bancária. Por exemplo: você precisa criar um twitter, agora X, uma página no Instagram, outra no Thread, no TikTok, e lançar um site para substituir os anúncios do seu trabalho nos classificados do Estadão. É importante também fazer lives sobre seus casos e, principalmente, você precisa arrumar uma companheira fixa, charmosa, atuante e interativa para os fãs shipparem o casal, tipo “Sr. e Sra. Smith” remasterizados.
– Hum … ship…o quê?? Ah, eu já tive algumas namoradas, a última foi a Shirley da lanchonete da esquina, mas ela me chutou há duas semanas porque eu não paguei a conta acumulada dos lanches.
– Não, não, Ed, tem que ser uma parceira com outro perfil. Alguém que tenha uma postura intelectual admirável, cultura cinematográfica e literária acima da média, posicionamento político progressista, carismática, comunicativa e cativante. Se ela for influencer com milhões de seguidores, nem precisa nada
disso!
– Bah! Nunca conheci nenhuma mulher com tudo isso em cima.
– Conheceu sim, lembra daquela tua magnífica cliente do vestido vermelho decotado? Aquela que, quando sentou na frente da tua mesa, você imediatamente travou e pensou: “eles olhavam para mim”? Se bem me lembro,
o nome dela era Bianca B., não?
– Sim, como poderia esquecê-la? Mas ela nunca deu sinal de olhar para mim com olhos outros que não fosse interesse profissional, ou seja, eu encontrar o marido dela que tinha desaparecido.
– Você é meio cegueta para essas coisas, Ed! Mas tudo bem você não possuir esse radar apurado, afinal, faz parte do seu charme. Ela está solteira agora, te garanto que basta você ligar para ela, convidá-la para sair e, depois, como quem não quer nada, propor o projeto!
– Bem, se você diz e o Luís me der meios para pagar um jantar decente para ela, eu topo! Pensando bem, vai ficar legal ela falando: “Mort, Ed Mort. B., Bianca B está no – como é que você sugeriu mesmo? – no Instagram!”.
– Excelente! Vai dar tudo certo! Vou falar com o Luís e dizer para ele que você está dentro. Tenho certeza de que ele vai priorizar o “novo Ed Mort” nos contos do próximo livro.
– Será que vai render um novo filme também? Se tiver, gostei do Paulo Betti me representando, viu?
– Sem dúvida! Por que não? E tenho certeza que o Paulo toparia interpretar você novamente com muito prazer!
– Bem, Ed, então está tudo combinado, mas antes de ir embora, queria te perguntar uma coisa meio íntima e delicada sobre a tua relação com o Luís, só curiosidade.
– Claro, pergunte à vontade, Aulus, afinal matar a tua curiosidade é o mínimo que posso fazer para agradecer a baita força que você está me dando.
– É que um dia o Luís me confessou estar meio chateado contigo, mas não disse exatamente porque. Parece que foi um papo contigo sobre personagens dele ou algo assim.
– Ah, sim! Ele já tinha me formatado e me lançado como Ed Mort, além de criar o Analista de Bagé e da velhinha de Taubaté e queria inventar outro personagem, mas estava meio sem ideia, aí me pediu uma sugestão. Eu dei, mas acho que ele não gostou muito porque fechou a cara comigo e disse para eu deixar pra lá. Até hoje não entendi o porquê da chateação dele.
– Sério? E qual foi a tua sugestão?
– “A bicha de Anta Gorda”, não achas legal?
Batendo com a mão na testa, Aulus exclamou – Bah, Ed, o Luis Fernando vai ter muito trabalho para renovar a tua imagem. Que os deuses deem muita paciência e inspiração ao coitado, viu?
– Só um gênio como Veríssimo mesmo pra conseguir isso, saiu falando sozinho pelo corredor o arrependido Aulus.
……………….
J.Emiliano Cruz, gaúcho, bacharel em História, vive em São Paulo onde é servidor público federal. Acompanha tudo sobre futebol e o Grêmio, seu time do coração, adora ler os clássicos russos, franceses e a história da Roma Antiga. Recentemente retomou o prazer da escrita que andava abandonado.
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