LÚDICA CONSTÂNCIA
Ela descia a rua da ladeira
Era a própria simplicidade
Não tinha o encanto daquela Marina
Que uma vez ouvira no rádio
Nem pronunciava tão bem os fonemas
Para complicar, manchou-se a saia amarela
Na semana em que ia procurar trabalho
O livro que ganhara de presente
Havia muitos e muitos anos
Cabia-lhe, ainda, na palma da mão
Ia descendo a rua de velhas casas
Quase todas desabitadas
Onde passara a sua infância
Também desabitada e fria
Seu nome era LÚDICA CONSTÂNCIA
Recebera-o de sua mãe, só isso
Mãe que se chamava Maria da Silva
Sempre houve muitas Marias
O seu pai sequer conhecia
Baleiro, malandro
Diziam que andava lá pelas bandas de Itaguaí
Não a viu crescer, tão sestrosa
LÚDICA CONSTÂNCIA
Ela trabalhava desde a hora da alba
Quando podia, quando não tossia
E, certa vez, andou no Chevrolet preto do patrão
Aquilo era vida, era conforto
Ainda que lhe tivesse doído
LÚDICA CONSTÂNCIA
Invariavelmente sozinha
Ia à missa, comungava
E voltava ainda mais sozinha
Punha-se a olhar a estátua do Cristo
Que trazia na pequena cômoda no quarto
Ladeada por uma vela num prato
Ia ao samba, quando podia
Quando não tossia
Teve lá seus namorados
Fez a pândega, cantarolou, dançou
Até viu a escola de samba, um dia
LÚDICA CONSTÂNCIA
Era orgulhosa
Os outros caçoavam dela
Ela fazia que não percebia
Mas sofria, sozinha
A compensação era no sábado
Fazia carne assada e comia
Acompanhado de um guaraná bem gelado
Quando podia
Anônima, vivia. Sobrevivia
As luzes da cidade não lhe animavam a descer
E entre descer e subir a rua da ladeira
Afloraram-lhe vários desejos e memórias
Morando na casa de dois cômodos
Que fora da bisavó
LÚDICA CONSTÂNCIA envelheceu
Fraquejou, perdeu a voz
Trabalhando quando podia
Quando não tossia
Até que subiu e não mais desceu
LÚDICA CONSTÂNCIA morreu
Aos 49 anos, de gripe, sozinha em sua casa
Enquanto a vizinha que lhe assistia
Foi dar jantar à filha mais velha
LÚDICA CONSTÂNCIA jaz
Engolida pela terra
No cemitério de Inhaúma
Em cova rasa, sem identificação
Talvez sequer tenha existido
Quando podia
Quando ainda havia.
———–
A Verdade nos Seres, livro de poemas do Daniel Marchi, pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com