Em um mundo no qual até a natureza é obscena, nada melhor do que viver a plenitude da obscenidade vigiada. Antes de prosseguir, vale registrar que nem sempre o que é obsceno é indecente. Messias dos filósofos, Jean Paul Sartre, o “gnomo obsceno” foi, para mim, um dos escritores mais brilhantes e mais indecentes que já li. E sabem por que? Porque ele adorava mentir e porque transformou a lady Simone de Beauvoir em sua serva, amante, esposa, substituta, cozinheira, enfermeira, administradora e até guarda-costas. Uma das mais afrodisíacas das virtudes, o pudor não era seu forte. Deixa pra lá, pois lembrei de Sartre apenas para abrir o apetite da narrativa de hoje. Minha primeira afirmação é nelsonrodrigueana, cujo maior legado foi a afirmação de que o homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.
Não é o meu caso, mas o do meu personagem, um homem simples, da labuta e que, certo dia, adentrou um cartório para registrar um de seus filhos. Para sorte dele, um dos zelosos funcionários da casa de fazer dinheiro com carimbos e canetadas era meu velho amigo Sebastião Evander Jorge. Companheiro em três tribunais superiores, Tião Jorge era daqueles que, como a batina dos padres, tinha mistérios insondáveis. Amigo dos amigos, tinha um bordão que era lembrado sempre no refúgio do cafezinho, onde ele dizia que só os diabéticos e os plantadores de cana conhecem as amarguras do açúcar. Valente e brigador que nem cobra de resguardo, mantinha em uma de suas gavetas aquele livrinho de pensamentos bíblicos, cujos textos pareciam inventados por ele mesmo.
Um deles era a prova de sua fraude literária, pois dizia que a ordem de Oscarito, mestre da gargalhada, é desopilar o “figo”, chamado de fígado pelos burgueses soberbos. Conheci Tião Jorge em um desses cartórios da Avenida W3 Sul, no Centro de Brasília. Outrora principal via de acesso e de negócios da cidade, hoje, no extremo Norte, não passa de um frequentadíssimo boulevard destinado a reuniões suspeitas de moças adeptas da saliência paga e craques no reconhecimento de senhores que acabaram de receber o décimo terceiro salário. Ainda vive por ali o mais antigo alfaiate da capital, um português que sofria de gases estomacais, mas, por indicação do Tião, comprou um ferro novo e há anos passa muito bem. Infelizmente Tião não está mais entre nós. Ficamos amigos quando decidi eu mesmo registrar meu neto 01, Arthur, o Grande. E grande na acepção da palavra.
Afamado, o cartório em questão ficava quase ao lado da pizzaria em que, no fim dos anos 80, o ex-presidente Fernando Collor reunia a turma das Alagoas para encontros nada republicanos. Acho que ali começou a história de registrar pedidos estrambólicos de sigilo de 100 anos para tudo que possa incriminar figurões. Também não quero falar deles. Minha história é sobre as figuras que procuravam Tião para um registrozinho aqui e outro ali. De certa feita, lá estava eu, quando adentrou o recinto um jovem senhor corroído pelo tempo e perguntou quanto custava para registrar mais um menino. Com papel e carbono já na máquina, Tião, antes de indagar sobre o nome escolhido, quis saber quantos filhos tinha o rapaz esquálido, ingênuo e com cara de trabalhador sofrido. Nove filhos, respondeu o indigitado. Entre assustado e perplexo, Tião, do alto de sua simplicidade, completou: “Caramba, meu amigo, o senhor tem filhos com abundância”.
Parecendo indignar-se, o pai respondeu quase gritando: “Não senhor. Quem tem filhos é minha muié e é sempre com a piriquitância”. Agora com o sorriso aberto, meu amigo prosseguiu: “Meu caro, o senhor entendeu tudo errado. O que quis dizer é que o senhor tem uma prole bem grande”. Rapidamente, e também sorrindo, o trabalhador lascou essa: “Doutor, agora o senhor acertou. É grande e grossa, viu”. Enfim, não devemos dizer tudo que pensamos, mas é importante pensar em tudo que iremos dizer. Guardei essa história para mostrar aos netos que informação boa é aquela que ninguém tem. Além disso, curiosidade mata e obscenidade está na mente de quem a processa. O resumo de tudo é que ninguém faz nove filhos sem paixão. E, sem paixão, não dá nem para chupar picolé. Quanto ao Tião Jorge, manteve a elegância até na hora de subir aos céus: botou a calça e calçou a bota.