Arte recolhida
Acervo caro e raro vive às moscas, longe do público
Publicado
emAlex Rodrigues
Um valioso acervo artístico-cultural, com cerca de 870 pinturas, gravuras, fotografias e esculturas e 300 peças de mobiliário, está longe dos olhares de quem circula pela Câmara dos Deputados. Por falta de um espaço apropriado à exposição dessas obras, a maior parte fica exposta em gabinetes ou guardada nas salas da chamada “reserva técnica”, no subsolo do Congresso, onde estão acondicionadas telas de artistas como Rafael Falco, Carlos Bracher, Fayga Ostrower, entre outros.
Há mais de quatro anos, por exemplo, o painel A Verdade Ainda Que Tardia, do artista gráfico Elifas Andreato, consagrado autor de célebres capas de discos da Música Popular Brasileira, não é exposta ao público. Com 5,8 metros de comprimento e 2 metros de altura, o painel em três módulos retrata a tortura contra presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985) e foi doado pelo próprio artista, que, até semana passada, acreditava que a obra estava desaparecida.
O painel foi, segundo o próprio Andreato, criado por sugestão de um integrante da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação do Chile, durante evento da Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça da Câmara dos Deputados. “Ele comentou comigo que era preciso criar uma imagem contundente, capaz de representar os relatos sobre o absurdo do período. Voltei a São Paulo pensando nisso. Como sempre estive envolvido com essas questões, me senti um pouco responsável por criar uma tela que denunciasse as barbaridades cometidas pelas ditaduras latino-americanas”, contou Andreato
Por três meses e meio, o artista dedicou cerca de 15 horas diárias ao propósito de “denunciar os horrores cometidos por agentes públicos”. O artista tomou conhecimento das práticas na segunda metade da década de 1960, por meio de amigos e conhecidos que foram torturados. Mais de 40 anos depois, ouviu os depoimentos de sobreviventes dos abusos prestados à Comissão Nacional da Verdade – colegiado criado em 2012 e que, até 2014, apurou as violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. “Foi doloroso pintar esse assunto. Custou-me muitas noites de sofrimento repassar toda essa tragédia”, contou.
Quando doou o painel e os direitos de reprodução à Câmara dos Deputados, no final de 2012, Andreato avaliou que a obra valia R$ 60 mil. Sua expectativa era que a tela ficasse permanentemente exposta ao público. A obra ficou exposta na Câmara durante o mês de dezembro de 2012, como parte da mostra Parlamento Mutilado: Deputados Federais Cassados pela Ditadura de 1964, em homenagem a 173 deputados que tiveram os mandatos devolvidos em 2012. Encerrada a exposição, foi guardada em uma das salas da “reserva técnica”.
Até a semana passada, Andreato não sabia do paradeiro do painel, mesmo tendo pedido ajuda a ex-integrantes da comissão parlamentar para descobrir o destino da obra. Foi então que amigos decidiram denunciar nas redes sociais o suposto “desaparecimento” da tela – que não consta na relação de itens do acervo disponível no site da Câmara, conforme a reportagem apurou.
Falta de espaço – A assessoria de imprensa da Câmara informou que a tela foi recolhida pela falta de locais onde expô-la. A reportagem foi autorizada a fotografar o quadro no acervo.
“A Câmara não dispõe, no momento, de uma parede na qual seja possível expor permanentemente, com segurança, uma obra de dimensões tão grandes. Aquela em que o painel foi exibido, em 2012, fica em uma área de grande circulação de público, onde acontecem diferentes eventos, inclusive a projeção de vídeos. Outras paredes utilizadas para a realização de mostras temporárias estão em locais cuja iluminação poderia ser prejudicial a obras expostas por longos períodos”, acrescentou a instituição, em nota.
Quanto ao fato de o painel não constar da relação de obras do acervo disponíveis para consulta online, a assessoria explicou que o Portal da Câmara está sendo reformulado e que menos de 90 das 1,7 mil obras patrimoniais foram cadastradas até o momento.
Informado que a tela está há mais de quatro anos guardada no acervo da Câmara, Andreato disse estar aliviado por saber que o trabalho não está perdido, mas também decepcionado por ver sua obra “escondida em um acervo”.
“É triste. Se eu tivesse sido informado de que, por qualquer motivo, ela um dia seria retirada do local onde esteve exposta e guardada em uma sala, teria me mobilizado para garantir que ela fosse para outro lugar onde pudesse ser preservada e exposta”, comentou Andreato.
O artista, no entanto, levanta a hipótese de o painel ter sido guardado por causa do tema que aborda. “[Em 2012] Alguns deputados acharam um absurdo a Câmara expor uma tela como aquela. Diziam que há mulheres nuas, que é de mau gosto… É fácil arrumar desculpas para tentar escondê-la. O que posso fazer é pedir que a devolvam para que eu possa doá-la para outra entidade ou instituição que tenha espaço apropriado.”
A assessoria da Câmara garantiu que não há nenhuma razão político-ideológico para impedir a exibição do painel. “A decisão de recolher a obra à reserva técnica foi motivada pela preocupação em garantir a integridade da tela. Assim como em relação às demais obras, a intenção é que o painel de Andreato volte a ser exposto na Casa, desde que haja um local adequado”, afirma a assessoria, explicando que, periodicamente, são realizadas exposições temporárias com outras peças do acervo e que o painel só não deixa a reserva técnica desde 2013 porque, além da falta de condições locais, a Câmara nunca recebeu um pedido de empréstimo de outra instituição interessada em exibir a obra.
Ex-curador dos palácios presidenciais, o galerista Rogério Carvalho considera que, se não dispõe de local apropriado para expor as obras, o mais indicado seria a Câmara doar ou emprestar o acervo para museus que possam exibi-lo.
“Não é retirando o acervo das instituições governamentais que vamos resolver o problema da falta de acesso do público às obras de arte. O melhor é que as instituições invistam em programas de visitação e exposições temporárias. Se isso não é possível, que a Câmara doe seu acervo. A obra de arte serve para fazer as pessoas melhores. Se não estiverem acessíveis, se não forem conhecidas pelas pessoas, não há sentido em preservá-las. Acho que esta é a expectativa de qualquer artista que doa seu trabalho a uma instituição pública”, diz Carvalho.
Para ele, em edifícios públicos, como o Palácio do Planalto e o Itamaraty, quadros, esculturas, mobiliário, tapeçaria e outras peças têm a função de representar a diversidade e a cultura nacional, apresentando-a aos visitantes, principalmente aos chefes de Estados.
“É impossível pensar o espaço arquitetônico de locais públicos como, por exemplo, os palácios presidenciais, sem peças que representem o que de melhor nossa cultura produziu. Mas não se pode querer dar caráter museológico a estes espaços, que são locais de trabalho. Por isso mesmo, tenho dúvidas se Câmara deveria manter este acervo, já que se trata de um local por onde passam muitas pessoas; onde o controle é complicado e cuidar desse patrimônio se torna ainda mais complexo ”, pondera Carvalho.
Para o galerista, uma vez que doou o painel, Elifas Andreato não pode reavê-lo pelo fato dele não estar exposto, mas pode questionar o fato da obra estar há tanto tempo guardada em uma sala.