Filha de gente arruinada, que fora rica, de riqueza antiga, Doraminda morava na fazenda de seu pai, Domingos, distante de qualquer povoado, de qualquer vila, de qualquer cidade.
De seu quarto, olhava pela janela, uma das muitas que se abriam na frente da grande casa antiga e térrea, e via os dias passarem devagar. Ao longe os tropeiros, os trabalhadores voltando do eito à tardinha, o vago mugir de um boi, as nuvens no vasto céu que prenunciavam chuva próxima. Era a estação das chuvas, e estas eram intermináveis, fortes, acompanhadas de relâmpagos e dias preguiçosos.
Pensava em Abílio, filho do Comendador que viera pedir sua mão em casamento. Casamento arranjado, como era naqueles tempos remotos. E de como a vida havia de ser. A mãe de Doraminda morrera há muitos anos. Fora criada pelo pai. Na verdade, não exatamente pelo pai, mas por uma preceptora vinda da Europa, por babás, por professoras de piano, aquarela, bordado, metrificação e francês.
Depois da proclamação da república, Domingos entrara em maus negócios e a situação da fazenda periclitava. O banco havia dado mais prazo antes de tomar a propriedade, graças à influência do Comendador, futuro sogro de Doraminda. E, depois do enlace, haveria investimentos nas terras, melhorias na lavoura, aquisição de maquinário e mais riqueza. Riqueza nova, proporcionada pelo encilhamento e pelo arrojo do Comendador estrangeiro, que tinha título, mas não raízes.
À cabeceira da mesa de jantar sentava-se o patriarca Domingos, com seus olhos baixos e duras feições, num jeito de quem se entregava permanentemente a divagações internas. À sua destra, Doraminda. Em frente a esta, Mme. Duvall, a preceptora que seria mandada embora em breve. Ao lado da estrangeira, Cassiano, o secretário particular e braço-direito do fazendeiro. Todos jantavam calados, enquanto Doraminda mal distinguia as feições dos comensais fracamente iluminadas pela bruxuleante luz de lamparinas a óleo dispostas à mesa e em aparadores próximos. A luz elétrica era a anunciada novidade da época, mas tardaria a chegar à fazenda.
Doraminda pensava como havia de ser. Como iria se relacionar com sua nova família, e desempenhar os papéis que dela esperavam. Conformada? Talvez. Nascera para isso, sem dúvida, numa sociedade dominada por homens, tratos e negócios.
Não havia conhecido o amor, e nem dele tinha grandes esperanças. Com o tempo, com a convivência, com o hábito, poderia vir a amar seu marido. Poderia ver na prole o rosto dele e seus jeitos. Jeitos que ainda não conhecia, pois pouco estivera com Abílio e, das raras vezes, jamais a sós, jamais para uma conversa longa e franca que lhes fizessem íntimos. Desta forma é que ocorria naquele então.
Resistir? Para quê? A ideia passara eventualmente por sua cabeça. Expressara à Mme. Duvall seu descontentamento, vez que não encontrava argumentos nem meios de falar sobre isso ao pai. Mas a preceptora procurou intervir e sofreu severa reprimenda. Se insistisse com o fazendeiro, ou mesmo com a madame, certamente ela seria também repreendida. E ficaria mal com o pai, sem dúvida. Doraminda nunca tivera uma confidente ou uma amiga na velha francesa, mas uma preceptora dura, de sentimentos indecifráveis e fala assertiva sob um seco acento francês. Mesmo assim, chorava em seus momentos a sós com a mestra de tantos anos, e lamentava o quão próximo estava seu enlace arranjado.
O relógio coordenava a contagem regressiva para todas as mudanças naquela casa e na vida daquelas pessoas. De forma mais direta, nas vidas de Doraminda e de Mme. Duvall. A velha preceptora se retiraria, provavelmente para a capital, onde seria dama de companhia de mulheres mais velhas e endinheiradas. Ou voltaria para sua terra natal com certo capital que amealhara. Para a jovem moradora da velha casa, reservavam-lhe o papel de esposa e mãe. Mãe, talvez, de filhas que também haveriam de falar francês, pintar aquarelas, de ter preceptoras ou professoras particulares.
Assim Doraminda seguia, convicta em seu papel no drama da vida, sem vislumbrar nada que pudesse alterar o roteiro, até que, um dia, enquanto descansava do almoço no divã da grande sala, num estado de torpor que dela se apossava, ouviu o tropel de cavalos em frente à casa. Saiu a ver, curiosa, qual cena se descortinava como novidade no outrora monótono filme que, todos os dias, se passava na fazenda remota.
Era uma visitante. Sua tia materna, Augusta, irmã mais velha de sua mãe, viera ver-lhe. Domingos fora chamado à porta do gabinete por um empregado, já advertido da chegada da visita, e chegou ao alpendre instantes após de Doraminda.
Augusta desceu da carruagem fechada que lhe trouxera e, com uma voz forte e aceno expansivo, disse “adeus, meus queridos” aos parentes que vinham recebê-la. Naqueles tempos, adeus era também um cumprimento na chegada.
– Adeus! Mas será mesmo a minha cunhada, indagou, atônito, Domingos, com algum desconforto na fisionomia.
Doraminda, que entreolhara curiosa o pai, sentira alguma contrariedade no fazendeiro, e já não lembrava da última vez em que vira a tia. Herdeira de enorme fortuna do marido, sem filhos, a tia vivia entre uma casa na capital da república e uma propriedade em Portugal.
A visitante foi efusivamente abraçada pela sobrinha e, depois, recebida no salão, onde, apresentada a Cassiano, recebeu protocolar aperto de mão da preceptora. Foi indagada pelo dono da casa por que não havia avisado com antecedência de sua chegada.
– Ora, senhor meu cunhado, mas tu não estás contente em receber-me?
– Não é isso! Mas, se soubéssemos, teríamos realizado uma recepção como devida.
– Não te preocupes. Eu decidi vir e vim. Estava muito saudosa de minha sobrinha. Vem cá, menina, dá um abraço na tia.
E Doraminda sentou-se com a tia num grande sofá, pousou a cabeça em seu regaço e dissimulou a emoção que a visita lhe trouxera.
Nos momentos seguintes, Augusta contou aos anfitriões a aventura que fora chegar à fazenda. Da capital ao interior, de barco, ferrovia, diligência. Dali à fazenda, após contratar carro fechado que lhe trouxesse. Domingos, abancado próximo à dama, ouvia atento. Perto deles, Mme. Duvall parecia se interessar menos pelos relatos da visitante, sem expressar no rosto qualquer surpresa, mas escutava e reagia, de quando em vez, com elegância. Mas uma atmosfera quase imperceptível de estranheza pairava entre a recém-chegada e o dono da casa. Não tênue o suficiente para passar despercebida por Doraminda, embora isso não houvesse abalado a genuína alegria por estar em presença da irmã de sua mãe.
Augusta não lembrava a falecida irmã na fisionomia e no corpo. Saíra mais à família materna, era alourada e baixa, enquanto a mãe de Doraminda puxara ao feitio mais esguio e moreno dos parentes do pai. No entanto, estar na presença da parenta trazia à jovem uma satisfação que há muito não experimentava. Naquele instante ainda não entendia se a tia apenas se constituía em novidade, ou se apresentava a chance de retomar laços de afeto quase filial que, no passado, tivera com Augusta.
Nas horas restantes do dia, Augusta descansou num banho, que uma empregada da fazenda havia providenciado, e só voltou a ver seus anfitriões na hora do jantar, para o qual Domingos mandara iluminar a sala muito mais do que o habitual. E houve conversações entre a tia e a sobrinha, acompanhadas pela preceptora. Depois da refeição, quando o fazendeiro e seu secretário já haviam se retirado ao gabinete para organizar certos serviços do dia seguinte, as damas se dirigiram à saleta e ali permaneceram até bem depois da hora em que costumavam se recolher os moradores da casa.
Nessas conversações, que oscilaram entre assuntos triviais e impressões gerais sobre as coisas que Augusta vira recentemente na Europa, surgiu a novidade do casamento próximo da sobrinha, que, em princípio, pareceu deixar a tia bastante entusiasmada.
– Ah, que alegria, minha filha! Saber que você entregou seu coração a um jovem rapaz.
Breve constrangimento geral seguiu-se à frase da cunhada, que extraiu um pigarro de Domingos. A real motivação do enlace não devia ser mostrada em público. Ao pai da noiva não passava de um vantajoso negócio para salvar suas propriedades, mas convinha aos demais que pensassem estar tudo dentro de um roteiro de vida, planejado para Doraminda desde que esta nascera.
Com uma certa tristeza ou conformidade nos olhos, que se deixavam ver com clareza sob a luz intensa e vibrante na sala de jantar, a moça revelou à tia:
– Na verdade, titia, conheço-o pouco. Mas espero nos darmos bem na vida que virá.
– Tudo a seu tempo, minha filha, tudo a seu tempo, mencionou Domingos.
– Sem dúvida, tudo a seu tempo, repetiu Augusta.
Nos dias seguintes, tia e sobrinha passaram longas horas a conversar e caminhar por lugares próximos à casa-sede. Falavam da vida, de expectativas, de planos. Doraminda confessou sua insatisfação com o casamento arranjado, pois afinal sentira-se confiante para dizer o que ia dentro de seu coração. Fora planejada, no período, uma visita do noivo, que causou franca tensão na jovem. O receio de desagradar ao pai contrastava com a completa falta de vontade de estar em presença do Comendador e de Abílio.
Augusta falava francamente à jovem, insistindo que ela devia expor a seu pai que não era de sua vontade o matrimônio. Nada valeria a vida infeliz que teria após o arranjo. Mas Doraminda, por respeito e temor ao pai, que não fora propriamente um déspota doméstico, mas era um patriarca à moda antiga, receava contrariá-lo e mais ficava apreensiva.
Vez ou outra, Augusta e Domingos, à parte dos outros, fechavam-se no gabinete deste último e tinham, também, longas conversas. Doraminda nunca adivinhara o seu teor, mas notava entre eles uma tensão permanente, embora seu pai nunca houvesse faltado com cordialidade e educação à cunhada.
Numa tarde, estando à procura da tia pela casa, entrando nos aposentos a ela reservados, Doraminda notou, sobre uma mesinha, um envelope ostentando, no canto superior direito, o pequeno brasão da família, que ornava a fachada da casa, a louça, alguma tapeçaria e até os desbotados reposteiros. Viu que estava endereçado à tia na capital, e reconheceu a caligrafia de sua preceptora. Então tinha havido comunicação epistolar de Mme. Duvall com Augusta? Doraminda não entendeu. O envelope estava aberto, continha algo em seu interior, mas a discrição não lhe permitiu tocá-lo. No entanto, curiosa e certa de que se encontrava sozinha no cômodo, pegou-o e, desdobrando a carta que havia dentro, leu a carta enviada pela francesa, com data de várias semanas antes. Nela, Mme. Duvall discorria sobre os planos do casamento, da insatisfação manifestada pela jovem, do temor de que houvesse permanente infelicidade no matrimônio, das desconfianças que nutria pelo Comendador. Pelo que entendeu, não se tratava de uma única missiva, mas a carta era pertencente a uma comunicação epistolar frequente entre as duas mulheres.
Ainda naquele dia Doraminda interpelou a tia acerca do assunto, e Augusta revelou-lhe que o motivo da visita era o alerta da preceptora, de que a jovem seria entregue a um destino cruel e triste. Mas fizera diligências na cidade e, graças a contatos seus, descobrira que o Comendador era um farsante, mau caráter escondido sob a aparência de homem de negócios e influências, envolvido em todo tipo de fraudes e rapinagens. Por isso, viera depressa, quando possível, para dissuadir Domingos da ideia, embora sem revelar-lhe toda a verdade descoberta sobre o Comendador, pois era preciso sondar as intenções do cunhado, tarefa que concluíra após longas conversas.
No entanto, Augusta arquitetara um plano. Com sua fortuna, resgatara as dívidas do cunhado, sob a condição de que oficializasse a doação da fazenda à filha, que entraria na posse e administração da propriedade quando se casasse, por livre e espontânea vontade, com o noivo que escolhesse. Tudo já estava preparado, aguardando somente o tabelião chegar da cidade para lavrar a escritura.
Doraminda, grata e enternecida pela atitude salvadora das duas mulheres, ficou para sempre reconhecida a Mme. Duvall, que morou para sempre na fazenda, e sua tia Augusta pelas articulações que evitaram um casamento arranjado, compromisso que logo se desfez, causando protestos e reclamações do biltre Comendador.
Ocorre que, ao contrário das expectativas da própria tia e da preceptora, Doraminda jamais se casou. Poucos anos depois, com a morte de Domingos, assumiu a administração da fazenda que, recuperada das dívidas, passou a ser lucrativa e muito próspera, tornando sua nova dona uma influente fazendeira que, graças a tirocínio e constância, multiplicou muitas vezes seus recursos, tornando-se referência na região. Investiu, também, na educação de moças e rapazes, fundando uma importante escola na cidade mais próxima. Viveu longos anos como benemérita da emancipação da mulher e protetora da juventude.