Hoje acordei com vontade de fazer o inferno na vida de um cretino qualquer. Não uma maldade simples como esvaziar o pneu do carro ou tocar a campainha da residência e sair correndo antes de ser descoberta. Precisava bolar alguma malevolência que ultrapassasse qualquer resquício de humanidade. Se sou perversa? Óbvio que não! Sou de Escorpião, com ascendente em Áries.
Se acredito em astrologia? Meu bem, e como refutar algo que me define como ninguém? Então, trate de ficar bem quietinho aí, enquanto lhe conto o que aconteceu ao longo do dia. Tenho certeza de que você concordará com o que fiz. E, caso a certeza não for suficiente, tenho cá meus métodos para convencê-lo.
Trabalho no meio jurídico há quase duas décadas, o que me possibilitou acumular considerável rol de conhecimento e, melhor, experiência para lidar com as adversidades que, nesse meio, não são poucas. Ademais, não basta ser apenas técnica, mesmo porque, não raro, certos juízes parecem buscar decisões, literalmente, fora das leis. Por conta disso, não tenho qualquer pudor em buscar outros métodos para salvaguardar os interesses dos meus clientes.
Aconteceu há pouco mais de seis meses, quando fazia a defesa de alguns moradores de Taguatinga, aqui no Distrito Federal, contra os danos causados por um famoso empresário do ramo imobiliário. A causa, na verdade, já havia nascido perdida, mesmo porque o tal magnata, ainda hoje, transita com desenvoltura por todos os fóruns. Para piorar, é amigo pessoal do magistrado que julgaria nossa ação.
Para surpresa de todos, vencemos. Não sou ingênua a ponto de imaginar que foi por conta da legislação, que nos era toda favorável. É que percebi o sorriso maroto do juiz toda vez que me observava. Fingi certa indiferença, mas é lógico que lancei mão da arte de sedução, que descobri possuir desde que ouvi da minha avó materna, num desses almoços de família, quando ela disse para todos à mesa:
— Essa menina não vale um tostão furado.
— Mamãe, a Regina tem apenas seis anos!
E daí? Essas coisas nascem ou não com a gente.
Apesar dos protestos da minha mãe e de outros adultos, vovó sorriu e completou:
— Gosto desse talento nato. Ela puxou isso de mim.
Além de ganharmos o tal processo, não percebi qualquer rancor por parte do empresário. Ele, que também não vale um tostão furado, fez questão de me cumprimentar logo após a decisão judicial. Em seguida, ele virou as costas e foi embora.
O que parecia caso encerrado se tornou um tormento até hoje. É que o magistrado passou a me perseguir. Mandava bilhetes, flores, bombons finos e outros presentes. Durante os encontros nos corredores do fórum, lançava-me sorrisos esperançosos de que algo pudesse vir a acontecer entre nós. Para piorar, o cretino, que está beirando os 70 anos, ainda é casado.
A despeito dessas investidas desagradáveis, sabia que não poderia simplesmente dar uma patada, certamente merecida, no mentecapto. Afinal, o sujeito é deveras poderoso e, não duvido, faria tudo para me prejudicar. Mas eis que hoje, justamente hoje, encontrei o velhote almoçando em famoso restaurante na Asa Sul. E, para piorar a situação dele, estava acompanhado da esposa.
Assim que me viu, o gajo tentou disfarçar e procurou manter os olhos fixos na mulher. Que oportunidade! Você pensa mesmo que eu perderia isso? Fui em direção ao casal e parei bem ao lado do magistrado. Sorri o meu melhor sorriso e o cumprimentei pelo nome, enquanto toda Brasília só o chama pelo sobrenome. Tenho cá minhas dúvidas se até a esposa não o chama assim também.
O cara ficou desconcertado com meu modo de me referir a ele, enquanto a sua companheira tentou disfarçar o constrangimento. Educada que é, apertou a minha mão de maneira delicada. Dois segundos após, já estava sentada à minha mesa, cardápio nas mãos, escolhendo o que eu iria comer.
Não tardou, o juiz e a companheira saíram do recinto. Pelo jeito que foram embora, tenho certeza de que nunca mais terei que ouvir qualquer gracinha daquele nojento. Quanto aos presentes, não sentirei a menor falta, pois sempre os dei para a Jurema, a minha secretária.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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