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Afinal, por que torcida está ocupando as ruas?
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emDas arquibancadas de estádios de futebol para as ruas. No domingo, integrantes de torcidas organizadas entraram em confronto com a Polícia Militar durante um protesto pela democracia na avenida Paulista, em São Paulo.
As imagens dos policiais jogando bombas de gás contra os torcedores, que responderam com pedras, foram transmitidas à exaustão por redes de TV. A polícia argumentou que usou armas não letais para evitar que o grupo se aproximasse de outro grupo que protestava a favor do presidente Jair Bolsonaro na mesma avenida.
Mas o que teria levado torcedores a fazer uma manifestação política?
A BBC News Brasil ouviu cientistas sociais e também um dos fundadores da Gaviões da Fiel, uma das torcidas que estavam na manifestação.
Leandro Piquet, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, disse que a atuação política de torcidas organizadas já ocorreu outras vezes. E cita como exemplos os atos das Diretas Já e a Democracia Corinthiana, na década de 1980. E também constantes protestos contra investigados na Máfia das Merendas, em São Paulo.
O pesquisador afirmou que não é possível prever se os protestos vão crescer ou ganhar a adesão de outros grupos. Para ele, a manifestação foi espontânea e linear, assim como protestos que ocorrem na Europa, mas que os torcedores devem perder o protagonismo caso o movimento cresça.
“Os ‘coletes amarelos’ na França também surgiram assim. Ninguém sabe o que acontece, como aparece, mas é uma parte constante da mobilização popular e as redes sociais facilitam. Eu acho que as torcidas não vão liderar os protestos pela democracia, mas elas encontraram o bom momento de começar”, afirmou.
Habituados ao confronto
No domingo, um grupo de torcedores organizados do Flamengo impediu um ato a favor do presidente Jair Bolsonaro no Rio.
No Rio Grande do Sul, torcedores de Grêmio e Internacional também se uniram por três vezes no mês de maio para impedir protestos que pediam um golpe militar no Brasil e a favor do governo.
Há três semanas, torcedores da Gaviões da Fiel, que possui mais de 120 mil sócios, também já haviam impedido que uma manifestação que pedia golpe militar no Brasil ocorresse na avenida Paulista. O grupo de corintianos carregava uma faixa com a frase “Somos democracia”.
Para o professor da USP, as torcidas organizadas levam vantagem em protestos de rua, pois têm costume de entrar em confrontos com a Polícia Militar e outras torcidas rivais.
“A torcida tem esse espírito do guerreiro, do conflito. Os torcedores têm uma disposição maior para o confronto. São geralmente homens jovens que vivem essa emoção constantemente. Eles têm disciplina, tática e uma coesão muito bem montada”, afirmou o professor.
Por outro lado, Piquet diz que as torcidas podem ter sua imagem prejudicada caso haja a presença de black blocs e anarquistas — conhecidos por usar a tática da violência e destruição de patrimônio — nos próximos protestos.
“A esquerda no Brasil nunca foi genuinamente violenta como em países nossos vizinhos, como Chile, Bolívia, Paraguai. Essa violência pode prejudicar o movimento, assim como atrapalhou em 2013. Quando isso ocorreu, a pauta original sumiu. Era pela redução do passe dos ônibus, virou algo contra tudo e estamos vivendo até hoje as consequências. O ideal seria tentar controlar qualquer forma de violência porque isso só afasta o eleitor médio e faz gerar suspeitas”, afirmou o professor.
Para ele, o isolamento social e a falta de jogos de futebol durante a pandemia também alavancaram a mobilização dos torcedores. “Estão carentes de ver um oponente, de montar uma coalizão e, por que não, entrar em confronto?”, disse.
O cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco, Túlio Velho Barreto, estuda sociologia do futebol há 20 anos e disse que o isolamento por conta da pandemia pode ter sido um dos fatores determinantes para eclodir os protestos.
“Essas torcidas estão sem a atividade que elas exercem duas vezes por semana. Essa ausência de eventos contribuiu para que elas fossem levadas para as ruas. Elas buscam chamar atenção e hoje há um certo vazio causado pela falta de jogos. Ela precisa se manter em atividade para continuar seu protagonismo e encontrou isso na política”, disse.
Membro da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial, (Redpol), Leandro Piquet ainda defende a atuação da polícia contra os torcedores no último domingo. Ele disse que a tropa conteve quem “estava mais preparado para o conflito”.
“Foi oportuna e correta a ação, pois o policiamento de desordem é tático e visa a separar. A mobilização da torcida é muito maior que esses grupos de direita. A torcida sabe como espalhar o oponente e atacar alvos vulneráveis porque são especialistas nisso. Dizer que a polícia escolheu lado é falta de responsabilidade. Parece que a polícia tem simpatia por grupos neonazistas, quando o comandante só quer separar e acabar com aquilo. E acaba indo para o lado mais forte”, afirmou.
Defesa da democracia
Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, disse à BBC News Brasil que a torcida participou do protesto porque tem a ideologia de defesa da democracia desde a sua fundação, em 1969.
“Fomos fundados na ditadura militar com o objetivo de fazer um movimento de dentro da torcida para dentro do clube para derrubar a ditadura que existia lá. Conseguimos isso nas eleições seguintes. A Gaviões sempre participou de campanhas políticas. O que a gente quer dizer dessa vez é que esses (manifestantes) contra a Constituição são minoria. A rua não é de vocês e vai ter luta”, afirmou.
Segundo ele, a Gaviões da Fiel não tomou uma posição oficial sobre os protestos, pois o conselho deliberativo composto por 34 pessoas está paralisado por conta da pandemia. Malfitani afirmou que as manifestações foram organizadas de maneira autônoma por membros mais jovens da torcida.
“A juventude está sentindo na pele os efeitos dessa crise, com um governo sem propostas para a área da saúde. Doze torcedores da Gaviões morreram de covid-19. O que o governo federal oferece para a gente? Não tem proposta. Ele só está preocupado em defender a família dele”, disse o fundador da Gaviões, que disse ter ido à manifestação e ter sentido orgulho da mobilização dos torcedores mais jovens.
Com 69 anos de idade, Malfitani disse que protestos como o que ocorreu no último domingo são muitas vezes criminalizados porque irritam “pessoas que ficam dentro de carro com ar-condicionado pedindo para voltar ao trabalho. Mas na verdade é o trabalhador que pega o trem e o ônibus lotado para morrer de covid”.
Para ele, a violência policial nos protestos é usada apenas contra os mais pobres.
“Quando a confusão aconteceu, 90% dos torcedores organizados já tinham saído da Paulista. Quantas bombas foram jogadas contra um protesto que exibia um símbolo nazista e bandeira da Ucrânia ao lado do nosso? A gente teve diálogo com a polícia. Saímos no horário combinado e na direção contrária porque se a gente se encontrasse com o outro grupo não daria nem briga, seria um massacre. Mas essa não era nossa intenção. Era apenas dar uma lição de como o país precisa se unir pela democracia.”
Ele cita que a confusão começou após a provocação de manifestantes pró-Bolsonaro, que foram até eles com armas brancas — como um taco de baseball exibido por emissoras de TV — e símbolos nazistas. Malfitani acredita que os protestos não devem crescer e que o último serviu como “um grito de alerta de que somos maioria e não podemos ver nosso país afundar”.
Mestre em ciência política pela universidade de Pernambuco, Túlio Velho Barreto diz que esses movimentos de torcidas têm uma grande facilidade de se mobilizar e são imprevisíveis.
“Eles são grupamentos organizados com pessoas que conversam, debatem, buscam afinidade e isso é muito mais fácil para se mobilizar do que pessoas soltas. Nas manifestações que ocorreram no Rio Grande do Sul, chegaram a questionar se os torcedores unidos de Grêmio e Internacional eram pessoas infiltradas querendo causar confusão, mas depois confirmaram que eram torcidas organizadas rivais do mesmo lado de uma luta”, afirmou.
Para ele, os protestos no Brasil também podem ter ganhado fôlego com a escalada de atos nos Estados Unidos após um homem negro ter sido morto sufocado durante a abordagem de um policial branco.
“Os que combatem o Trump lá são os contra o Bolsonaro aqui. As formas de agir são as mesmas e as bandeiras também. Aqui no Brasil também há um descrédito na oposição, que não consegue confrontar a direita de Bolsonaro no poder e agora as torcidas organizadas se tornaram uma motivação”, afirmou.
O pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco afirmou que há três possíveis cenários que podem ocorrer nos próximos protestos desse tipo no Brasil. O primeiro é um possível recuo dos apoiadores de Bolsonaro causar também um recuo das torcidas.
Mas ele afirma que os torcedores também podem interpretar a vitória como um sinal de que podem ir mais longe num embate contra o governo. E, por fim, os grupos de direita também podem se organizar para um confronto contra os torcedores.
A BBC News Brasil apurou que torcidas organizadas já marcaram ao menos 14 manifestações antifascistas para o próximo domingo em diversas regiões do país.