Lucas entendia tudo ao pé da letra. Era esse o problema.
Quando criança, ficava simplesmente aturdido com metáforas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Quando a avó portuguesa dizia: “Stá a chuveire a cântaros”, o garoto se encolhia, com medo de ser atingido por um daqueles “acântaros”, que tombavam do céu. Quando a mãe dizia que quase morrera de rir conversando com uma amiga, ele a abraçava com força, receoso de perdê-la para sempre.
Com o tempo, Lucas percebeu o sentido dessas construções linguísticas. Mas as manejava com cuidado, como se falasse uma língua estrangeira mal aprendida. Na verdade, evitava-as o mais possível, fugia delas como o diabo da cruz – uma imagem que sempre o fazia tremer nas bases, ainda mais por ter nascido em uma família terrivelmente evangélica.
Como era previsível, o rapaz descartou carreiras baseadas na linguagem. Formou-se em química e foi trabalhar em uma multinacional farmacêutica. Não era um pesquisador de ponta – faltava-lhe imaginação para isso –, mas um profissional razoável. Em contrapartida, movia-se à vontade, como um porco na lama – outra imagem que lhe provocava calafrios – na internet, universo no qual chegava a ser brilhante.
Certo dia, ao ler um artigo de jornal, Lucas se deparou com uma expressão perturbadora: “amor líquido”.
“Como pode um sentimento ser líquido?”, pensou, mas logo percebeu que era uma de suas odiadas figuras de linguagem. Curioso, decidiu pesquisar a expressão, e verificou que se tratava de um conceito cunhado por um sociólogo polonês, Zygmunt Baumann, para designar as relações entre as pessoas na pós-modernidade – relações cada vez mais fugazes, etéreas e descompromissadas.
“Aí tem coisa”, pensou o jovem químico. “Baumann podia ter criado o conceito de ‘relações interpessoais na pós-modernidade’, bem mais preciso ou, se quisesse ainda mais rigor, ‘relações interpessoais fugazes, etéreas e descompromissadas no âmbito da sociedade pós-moderna’. Mas preferiu a expressão ‘amor líquido’. Vai ver que – e sua imaginação soltou-se, como se ele estivesse chafurdando feliz na web – ele e seus associados conseguiram mesclar um afeto do psiquismo a um dos estados da matéria! O que abre as portas para a existência do amor gasoso e assim por diante!”
A formulação dessa hipótese levou-o a mergulhar fundo na rede – mais precisamente, na deep web. “Busco amor líquido LÍQUIDO”, anunciou aos hackers de plantão. Obteve em pouco tempo o contato com um químico “selvagem”, que lhe garantiu ter realizado a fusão que ele imaginara. Dias depois, Lucas recebeu, em sua casa duas garrafinhas de Amor líquido, que lhe custaram os olhos da cara – expressão que o fazia tremer, só de imaginar ter os globos oculares arrancados com uma colher, como vira em um filme de terror.
Lucas decidiu começar pelo amor sólido – uma nova dimensão do amor táctil, que não envolvesse tocar e ser tocado pela pessoa amada. Depois pesquisaria o amor gasoso e, finalmente, o amor líquido. Reservaria um dia para cada investigação. O ideal seria espaçar os experimentos, pelo menos três dias de intervalo entre eles, para que eventuais efeitos retardados se dissipassem antes da investigação seguinte. Ele, porém, estava demasiado ansioso para rigores metodológicos.
Para começar, Lucas besuntou a face, o torso e as partes baixas com o líquido de uma garrafinha, deixando-a pela metade. Em pouco tempo experimentou um leve aquecimento na pele, uma sensação de bem-estar – e uma grande ereção, maior que as habituais. Esperou pacientemente os efeitos passarem e concluiu: “O líquido para amor sólido não funciona”. Embora falso – basta pensar nos shots para entrar no clima e nos porres por dor de corno, sofrência e assemelhados –, era um dos primeiros jogos de palavras de sua vida.
No dia seguinte, ele encarou o amor gasoso. Despejou o restante da garrafinha num recipiente e levou-o ao fogo. Com a evaporação do líquido, materializou-se uma figura feminina nua que se aproximou dele e tocou-o “lá”.
A transa estendeu-se por muito tempo, mas não o satisfez. “Foi como fazer com uma boneca inflável ultra diáfana”, admitiu. Não havia onde segurá-la – na verdade, não havia muita matéria a ser tocada. “E se eu fosse mulher?”, indagou-se. “O gás formaria um homem com uma ereção etérea? Talvez os relatos medievais sobre súcubos e íncubos, demônios que assumem respectivamente forma feminina e masculina para fazer sexo com os seres humanos, se baseassem em experimentos com o Amor Gasoso! Esse conhecimento secreto milenar deve ter chegado a Baumann, que o expressou em seu conceito!”
Tão logo acordou, Lucas abriu a garrafinha restante para testar o Amor Líquido. Exasperado com os insucessos anteriores, tomou tudo de uma vez. Minutos depois, sentiu um formigamento na pele, que se aqueceu progressivamente. A sensação começou pelos pés e subiu por seu corpo, que pareceu se abrir para o universo.
“Então é isso o amor!”, exclamou maravilhado. “Transmitir energia para todas as coisas e receber energia de todas elas. É algo que não precisa de um objeto – ao contrário, canalizar essa energia para apenas uma pessoa parece empobrecedor!”
A experiência do amor total estendeu-se por seu peito, comprimiu-lhe o coração – ele compreendeu o que significava ficar com o coração apertado devido a uma paixão – e avançou para seu cérebro, a sede do psiquismo. A abertura para todos os seres vivos tornou-se cada vez mais deliciosa. Em tais circunstâncias, pouco importava que ele não conseguisse respirar: Lucas estava, literalmente, se afogando em amor.
Mas não foi isso que o matou, e sim a explosão de prazer que mobilizou todas as suas sinapses. Ele ainda chegou a pensar “Amar é perigoso, mas céus, vale a pena!”, e em seguida tombou com uma expressão de encantamento no rosto.