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Flores da samambaia

Afrânio, o corretor que se achava poeta de verdade

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Àquela hora, a rua inteira ainda estava entregue aos braços de Morfeu, menos o papagaio e o poeta, que insistia em versos piegas e rimas banais. Este, aliás, talvez não tivesse noção da enorme falta de traquejo com as palavras ou, se tivesse, certamente culparia o parco tempo por conta da corrida vida de corretor de imóveis. Nisso, aliás, ele era dos melhores.

Afrânio Matos, 44 anos, tipo que poderia passar despercebido, caso não fosse pelo vasto bigode que ajudava a esconder os dentes escurecidos pelo consumo excessivo de café. É verdade que o sujeito havia fumado durante quase vinte anos, mas o cigarro não fazia mais parte da sua rotina desde pouco antes da conquista da Taça Libertadores da América do seu Fluminense. Diante da promessa, ainda tentou recuar, mas não seria prudente ir contra os desígnios dos deuses do futebol.

Aconteceu logo após a venda de uma luxuosa mansão no Lago Sul, quando Afrânio recebeu uma polpuda comissão. Fez alguns cálculos e teve certeza de que poderia sobreviver sem trabalhar durante pelo menos seis meses, desde que reduzisse certas despesas. Nada de confraternizações com os amigos ou viagens de última hora para visitar as praias que só conhecia através de fotografias. Quanto aos restaurantes, faria todas as refeições em casa ou, no máximo, compraria uma quentinha nos momentos em que seu talento para culinária, que era quase nenhum, o abandonasse.

Decidido, abasteceu a geladeira e a despensa com víveres e tratou de se dedicar à poesia. Levantava cedo, preparava café suficiente para completar a generosa garrafa térmica, herança da avó. Em seguida, sentava em frente ao computador e buscava inspiração na samambaia de plástico pendurada no teto da sala.

“E se a samambaia possuísse flores?

Estaria eu subvertendo a vontade de Deus ou da natureza?

Ou seria eu mero aprendiz da vida?

Vida vazia longe de tanta beleza da minha Tereza.”

Afrânio, não se sabe se por causa da primeira estrofe escrita, se sentiu Dummond por um instante. Vá lá, ao menos Vinicius. Sorveu o resto de café na xícara antes de voltar seus dedos impacientes para o teclado.

“Tereza, Tereza, Tereza,

Eis que aqui estou.

Desejoso dos seus lábios nos meus,

Pois os meus são eternamente teus.”

Não restava dúvida, segundo o poeta de última hora, que aqueles versos entrariam para a história. Choveriam convites para entrar na Academia Brasileira de Letras. Não que ele desejasse a morte de algum imortal. Morte de algum imortal? Afrânio voltou a escrever para não perder aquele momento de tamanha inspiração.

“Independentemente da morte, Tereza,

Nosso amor é imortal.

Sabe por que sei disso?

Porque o bem sempre vence o mau.”

Quanto mais as palavras se somavam, Afrânio dava mais e mais goles no café. Não sentia mais fome, a não ser de despejar todos seus sentimentos na tela. Nem dormir conseguia, apesar das flagrantes olheiras.

Dona Maria das Dores, a diarista, encontrou o patrão caído no chão da sala. A mulher tomou um susto, pois imaginou que ele estivesse morto. Não estava. Mesmo assim, achou melhor chamar o porteiro para ajudá-la a carregar o homem para a cama.

A ambulância chegou e levou Afrânio para o hospital. O gajo passou dois dias ali, até ser liberado. Voltou para seu apartamento na Asa Norte e buscou inspiração na samambaia. Esta, além de continuar sem flores como qualquer outra pteridófita, não parecia disposta a transformar o homem em poeta.

Afrânio, inquieto, andava de um lado para o outro, até que percebeu que o dinheiro estava perto de acabar. Precisava voltar ao trabalho. Entretanto, jurou que, assim que fechasse outra venda de imóvel, retornaria para o que julgava ser o seu destino.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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