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Afrânio, sufocado na tumba, sabia dar suas voltinhas

Sabem o verso de Caetano Veloso, “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”?

Afrânio não achava a menor graça nessas palavras. Era de opinião que elas denotavam um certo viés vivocêntrico do compositor (Afrânio nasceu em 1950, curtiu adoidado o tropicalismo, não ousava falar em preconceito do Velho Baiano, de quem era tiete, preferia o termo viés, que no fundo quer dizer a mesma coisa sob uma roupagem mais neutra e mais erudita). E percebia também, por que não dizer, uma pitada de mortofobia. Ele era ligado nessas paradas. Também, pudera, era um fantasma, mortocêntrico de carteirinha e papel passado (no caso, atestado de óbito).

Havia outro motivo para Afrânio não curtir aquele verso: nascido, criado e falecido em Niterói, ele nunca fora atrás de trio elétrico. Vivocentrismo por vivocentrismo, preferia o samba-enredo da Mangueira, sua escola de coração: “Me leva que eu vou/Sonho meu/Atrás da verde-e-rosa/ Só não vai quem já morreu…’. A Mangueira, sim. O Flamengo, sim. As mulheres deslumbrantes de fio-dental nas praias de Niterói e no Carnaval carioca, evidente que sim. Trio elétrico, com todo o respeito à baianidade, obrigado, mas não, obrigado.

Para um fantasma, Afrânio levava uma vida (vida? Vá lá, existência, e num plano diferente daquele dos mortais) pra lá de agitada.

Quando estava frio, ou não tinha jogo do Mengão, ele passava horas na biblioteca pública, consultando livros que fundamentassem sua tese de uma conspiração vivocêntrica alimentada pela mortofobia estrutural – da qual muitos viventes nem tinham consciência. Certas expressões populares o enfureciam, como bater as botas, esticar as canelas, comer grama pela raiz. Mas o pior, em sua opinião, eram palavras comuns como mortificar. Não significava ficar morto, como se poderia imaginar, mas uma série de atos desagradáveis do ser vivo: castigar o corpo com penitências, ficar entorpecido, amortecido – mais uma palavra injuriosa, diga-se. “Nos roubaram até o puro e simples ficar morto!”, repetia sempre, amargurado.

Afrânio chegou a baixar numa sessão espírita kardecista para ditar um texto psicografado contra esse verbo, mas os irmãos acharam que ele era um espírito zombeteiro e imploraram que subisse. Teve melhor sorte na umbanda, o chefe do terreiro achou a ideia genial, admitiu que jamais havia pensado no significado de mortificar, confessou aliás que nem conhecia essa palavra, falou que assinaria o Manifesto pelos Direitos dos Mortos que Afrânio estava escrevendo e o convidou para uma festinha com algumas pomba-giras e ciganas incorporadas em burras que gostavam do fuzuê; no dia seguinte, porém, arregou, disse que os filólogos iam atacar a umbanda, coisas assim. O fantasma militante balançou a cabeça, decepcionado. Por vezes, sentia-se um Quixote mortocêntrico a investir contra os moinhos de vento da mortofobia.

O pior é que o universo dos mortos era no mínimo tão diversificado quanto o dos vivos. Até porque só a geração atual no planeta estava viva, todas as anteriores… Ele não falava muito sobre essas coisas mas, em mesa branca (é, participava às vezes) insistia neste ponto: cada um tinha a “eternidade”, o “céu” e o “inferno” em que acreditava. Morria de rir dos que se julgavam no paraíso e passavam cantando hinos, junto aos anjinhos que visualizavam; e morria de pena dos que se julgavam pecadores indignos de salvação, que imaginavam e criavam para si os mais dolorosos tormentos. Eles poderiam apagar as chamas do inferno murmurando simplesmente “Chega!”, mas nem pensavam em fazê-lo.

Afrânio acreditava que todos os pós-vivos (não gostava da palavra “mortos”) teriam de evoluir espiritualmente. Por vezes, brincando, parafraseava a frase de Santo Agostinho, “Dai-me a castidade, mas não já”, e repetia, “Dai-me a evolução espiritual, mas não já”. Para um fantasma esperto, com mais de 60 anos de praia, o Brasil de 2015 era tão gostoso…

Ver o Flamengo jogar, por exemplo, maravilha! Toda semana assistia a jogos do Mengão no Maraca, por todo o país (fantasmas viajam rápido e não pagam ingresso). Sentava junto a outros abantesmas fanáticos por futebol e jamais brigavam, baixaria é coisa de vivo.

Se Afrânio via os jogos da arquibancada, nas praias entrava em campo. Quase todos os fins de semana estava em Piratininga, Itaipu e outras magníficas praias oceânicas de Niterói, babando nas meninas quase despidas, tão lindas e tão dadas quanto as de Ipanema e outras praias cariocas. Ele acariciava peitinhos, xaninhas, bundinhas. A maioria tinha um arrepio de prazer, mas outras, mais sensíveis, chegavam a molhar a calcinha do biquíni. Atribuíam a onda repentina de excitação aos olhares dos carinhas que as paqueravam e, por vezes, ficavam com eles.

Mas nada se comparava ao carnaval. Ele não perdia um ensaio na quadra da Mangueira, acariciando passistas e rainhas da bateria. Na noite do desfile, era a glória. Ele materializava um chapéu e um terno branco, no modelo de Zé Pelintra (gastava nisso uma boa dose de energia psíquica mas valia a pena) e entrava no Sambódromo com a verde-rosa. Nessa hora não acariciava mulher alguma, ficava extasiado diante de tanta beleza e entregava-se ao samba. Alguns passistas sentiam a presença de uma entidade e o saudavam respeitosamente; outros vislumbravam seu terno branco e murmuravam as palavras rituais, “Salve seu Zé Pelintra. Salve os malandros, salve a malandragem!” Ele sorria, em silêncio, e agradecia com uma reverência.

Na ala das Baianas, porém, havia mulheres com muitos anos de umbanda e candomblé, que o conheciam – literalmente – de outros carnavais. Elas o reconheciam, comentavam entre si:

– Olha, gente, o Afrânio chegou! – e acrescentavam:

– Boa noite, velho amigo. Vem sambar e desfilar com a gente!

Ele aceitava, mas ficava pouco tempo com as baianas. Queria sambar em todas as alas, subir nos carros alegóricos, tocar com a bateria. Só não chegava junto do mestre-sala e da porta-bandeira, vai que um deles o percebia, se assustava e errava um passo? Já imaginou a Mangueira perder o primeiro lugar por culpa sua?

E assim Afrânio seguia em seu devir mortocêntrico, divertindo-se bem mais que em seu tempo de vivente. Por vezes lembrava de uma quadrinha escrita no túmulo de alguém que, como ele, não havia sossegado o facho com a morte. Não lembrava dos dois primeiros versos, mas os últimos eram: “À noite não fico aqui./ Vou passear na cidade.”

Ele sempre dizia para si mesmo:

“Preciso encontrar esse cara, ensinar a ele que há muita coisa gostosa a fazer de dia. Só espero que ele goste de mulher e torça pelo Flamengo!”

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