Um grupo de mulheres ligadas ao agronegócio, que se autointitulam “mães do agro”, encabeça uma campanha para interferir no currículo e fiscalizar o conteúdo dos materiais didáticos de escolas públicas e particulares do Brasil, suprimindo as críticas ao setor. O movimento foi batizado de “De Olho No Material Escolar” e, apesar do nome, vai na contramão de tudo o que defende este observatório.
As fundadoras, Andréia Bernabé e Leticia Zamperlini Jacintho, argumentam que, ao acompanharem as atividades dos filhos, se depararam com “mentiras” sobre a realidade do campo brasileiro, marcada pela monocultura e pela concentração de terras e riquezas, em contraponto à agroecologia e ao modo de vida camponês.
Para rebater o que é ensinado, elas contam com o apoio de ministros do governo Bolsonaro e de políticos da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). A forma de ação se parece ao que ocorre com o “Escola sem Partido”, movimento que diz combater a “doutrinação político-ideológica”, mas que, na prática, busca cercear as discussões sobre gênero, sexualidade e respeito à diversidade em sala de aula. Assim, as integrantes sugerem que os educandos façam vídeos, fotos ou registros dos materiais utilizados, de forma a comprovar os “problemas”.
Em 2018, a produtora rural Letícia Jacintho buscou o apoio de outras mães para entregar uma carta ao Anglo de Barretos (SP), criticando a abordagem do colégio sobre questões como desmatamento, violações contra indígenas, trabalho escravo e uso de agrotóxicos.
“As crianças são incentivadas a manifestar piedade aos índios e repudiar a cultura da cana de açúcar”, afirma um dos trechos. “São estimuladas a se colocar na posição de uma família indígena que teve suas terras retiradas para plantação de cana, no entanto, nenhum contraponto é oferecido pelo material ou escola”.
Segundo ela, há uma “pesada carga ideológica” nos conteúdos. Outro exemplo citado foi o dos agrotóxicos, definidos pelo grupo de forma eufemística como “defensivos agrícolas”, que causam a degradação das terras e do ambiente. A apostila apontava os latifúndios e a monocultura como responsáveis pelos problemas no campo.
“Trata-se, mais uma vez, de visão pesada, atrasada, carregada de ideologia, e que expressa a opinião pessoal do autor do texto”, rebateram as “mães do agro”. “Opiniões enviesadas como esta não constituem conteúdo educacional e não podem estar presentes nas apostilas de nossas crianças”.
Após o envio da carta, Letícia foi angariando apoios. O primeiro deles foi o do engenheiro agrônomo Xico Graziano, chefe de gabinete de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1995, seu primeiro ano de governo. Graziano foi deputado federal pelo PSDB paulista e assessor especial do Instituto FHC, fundado pelo ex-presidente, de quem se considera amigo, além de secretário estadual de Meio Ambiente de São Paulo na gestão José Serra. Depois, se tornou bolsonarista. E hoje critica o presidente.
Ele defende, por exemplo, a facilitação da entrada e do uso de agrotóxicos, como no projeto de lei que ficou conhecido como PL do Veneno — proposto e relatado por parlamentares ligados ao agronegócio. Graziano tem divulgado uma série de vídeos afirmando que livros didáticos e apostilas propagam uma “imagem negativa e preconceituosa do agronegócio, sem embasamento científico”.
Em um deles, postado em suas redes sociais no dia 10 de outubro de 2020, o ex-deputado afirma que analisou apostilas de várias escolas particulares, começando pela rede Anglo, e constatou “erros, desatualizações e ideologia”.
Outro aliado da campanha é o também engenheiro agrônomo Marcos Fava Neves, que chegou a ter o nome especulado para assumir o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento concorrendo com Nabhan Garcia, Luis Carlos Heinze (PP-RS) e a atual ministra, Tereza Cristina.
Em vídeo publicado no canal Terraviva, Naves divulgou um roteiro para que as “mães do agro” avaliem os materiais didáticos dos seus filhos. Entre as orientações estão a busca por termos que consideram “ultrapassados”, como latifúndio e proletário, e a gravação de aulas. Na avaliação do agrônomo, os professores de Geografia e História são “os mais doutrinadores e difusores de ideologias esquerdistas”.
No perfil do movimento no Instagram, há vídeos e outros registros de encontros das integrantes com membros da Sociedade Rural Brasileira (SRB), do Conselho Superior do Agronegócio (Cosag), órgão técnico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), com parlamentares e com os ministros Tereza Cristina (Mapa), Milton Ribeiro (Educação) e Ricardo Salles (Ambiente). Todos aparecem dando força à iniciativa.
Nomes como Coronel Tadeu (PSL-SP), acusado de falta de decoro por destruir uma charge que denunciava violência policial contra jovens negros, Jerônimo Goergen (PP-RS), autor do projeto de lei que tipifica como terroristas as ocupações feitas por movimentos sociais, e Aline Sleutjes (PSL-PR), ligada ao setor leiteiro paranaense, são figurinhas carimbadas nas lives. De Olho Nos Ruralistas publicou reportagem sobre ela em março: “Inimiga do MST, ruralista é eleita para assumir Comissão de Agricultura“.
“Eles já conseguiram fazer articulações em vários grupos”, conta o geógrafo Paulo Alentejano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “É bastante preocupante a velocidade como os caras conseguiram se articular. É muito grave e pouca gente estava sabendo”.
Nota publicada na coluna da jornalista Mônica Bergamo, da Folha, em outubro de 2020, informa sobre uma ação de Goergen junto ao MEC, pedindo a revisão dos livros didáticos. E, em matéria do Valor Econômico, Tereza Cristina diz que crianças são “mal ensinadas” sobre o tema.
Em dezembro, as líderes da campanha se reuniram com Ribeiro, ao lado de vários parlamentares da FPA, para apresentar a iniciativa e debater ações do MEC. Em vídeo publicado no dia seguinte a essa reunião, o movimento comemora que o agronegócio vai indicar representantes para a comissão de avaliação dos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do ministério.
Integrantes do Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária (GeoAgrária) da Uerj e do Grupo de Trabalho sobre Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros (GTAgrária) – Seções Rio de Janeiro e Niterói escreveram um artigo denunciando a nova ofensiva do agronegócio na educação.
Na avaliação deles, trata-se de uma disputa ideológica profunda, cujo objetivo é aprofundar a hegemonia do setor, afirmando-o como um dos pilares da economia e da sociedade brasileira e silenciando qualquer perspectiva crítica sobre as implicações econômicas, sociais e ambientais:
— Buscam a todo custo impedir que nas escolas públicas e particulares se debata sobre desmatamento e queimadas, sobre trabalho escravo e superexploração do trabalho, sobre concentração fundiária, da riqueza e da renda, sobre a violência no campo, como se tudo isso fosse coisa do passado e não existisse mais no campo brasileiro, no qual reinaria o agro pop, tech, tudo.
De acordo com os professores, o fato de ser uma campanha direcionada exclusivamente às mães diz muito sobre o caráter patriarcal do agronegócio. “A educação dos filhos é vista como tarefa apenas das mulheres e não como uma responsabilidade conjunta de pais e mães”. Além do machismo, eles destacam o racismo, “uma vez que, dentre outras questões, em mais de cinquenta vídeos analisados não há nenhum em que apareça uma mulher ou um homem negro”.
Os grupos de estudos pedem que educadores, movimentos sociais e sindicais, associações científicas e educacionais reajam. “O que está em jogo, para além da preservação da liberdade de professores e professoras, é o próprio debate sobre o papel social da educação: se uma educação pública e democrática ou se uma educação a serviço de interesses particulares de um dos segmentos mais retrógrados da sociedade brasileira, disfarçado sob o verniz das tecnologias mais modernas”.