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A Luz Azul*

Ahriman, espírito da lâmpada, inspira tratado jurídico da ressurreição

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Por muitos anos andei pelos antiquários da cidade procurando. Aos sábados acordava cedo e ia a Copacabana, ao centro, a São Cristóvão e mesmo aos subúrbios em busca de algo que não sabia exatamente o que era. Nessa busca incessante por um item desconhecido, definitivo, único, ia comprando e colecionando outras coisas. Relógios, estatuetas, espelhos, móveis, baralhos, máquinas, discos, instrumentos musicais, joias, livros, quadros, álbuns de fotografia com rostos desconhecidos e já longínquos. Minha sala, aos poucos, se transformara num museu, depois expandido para os outros cômodos do velho apartamento em Botafogo de onde, em alguns dias, via pela grande janela da sala o pôr-do-sol e a lua aparecendo ao mesmo tempo, por detrás do grande mar e da linha caprichosamente desenhada pelas montanhas.

Havia muitos anos que eu estava só. Viúvo, minha única filha morava fora do país com seu marido e um filho, neto que eu ainda não havia conseguido conhecer. Até a passagem aérea ela havia insistido em me mandar, mas eu não renovara o passaporte. Sou relapso nessas burocracias da vida… O passaporte estava vencido, a habilitação estava vencida, as vacinas, os exames médicos e mesmo alguns boletos que se acumulavam numa pequena travessa de porcelana sobre o aparador da saleta contígua ao hall de entrada. E não é falta de dinheiro. É só preguiça mesmo. Uma preguiça incontrolável de desempenhar esse papel boboca do cotidiano. Prefiro me concentrar nas coisas grandes: aguardar o sol se pôr na sexta-feira sabendo que, no dia seguinte, acordarei bem cedo, vestirei minha calça branca de linho, uma camisa bem leve, um chapéu Panamá na cabeça e sairei pela cidade em busca do que preciso, pelos antiquários, pelas ruelas, pelas feiras, a bordo do meu velho automóvel, torcendo para que a blitz não me pare, porque o licenciamento também está atrasado há tempos.

Vou em busca do quê? Não sei, mas vou. Mas saio. Mas compro. Mas catalogo. Mas guardo.

Outro dia acordei mais tarde que o habitual. Olhei para fora e o dia estava impressionantemente belo. Nenhuma nuvem no céu. Cheguei mais perto da janela da sala e senti, já àquela hora, o bafo quente do Rio de Janeiro. Os raios de sol davam um colorido todo especial à paisagem, mas fazia um calor cruel. Mesmo assim não deixaria de sair para o meu garimpo. Podia ser naquele dia, podia ser em outro, eu havia de achar o que procurava, embora não soubesse definir a preciosidade prestes a ser encontrada em qualquer lojinha, num canto empoeirado e esquecido.

O calor e a hora circunscreveram minha busca às proximidades. Iria à Praça XV, onde aos sábados há o tradicional bricabraque a céu aberto tão apreciado pelos cariocas.

Andei pelas barracas, cumprimentei alguns comerciantes já conhecidos, interessei-me por muitas coisas e levei para casa uma pequena moeda de ouro com a efígie de Pedro II, um abajur com uma bailarina estranha e bela e um antigo quadro a óleo, cujo vendedor me garantiu ser do século XVIII, representando algum arcebispo antigo e esquecido que vivera na cidade de Diamantina. Arrependi-me por, neste dia, haver deixado para trás uma caneca que parecia antiquíssima, com uma cena bucólica gravada em delicados traços ocres. No fundo, a palavra “porcellana”, escrita à moda antiga, denunciava a idade do objeto. O remorso de colecionador foi amenizado por lembrar que, diversas vezes, vi os itens se repetindo em intermináveis feiras ou, então, mesmo que vendidos, não raramente eles retornavam, às vezes pelas mãos de outros vendedores que os ofereciam como novidades. Fora assim com um velho pro-jetor de filmes Pathé manual, todo restauradinho, que deixei passar meses atrás e, poucas feiras depois, estava sendo vendido em outra barraca, 1/3 mais caro. Comprei-o, lógico, depois de breve pechincha trazer o item ao preço original. O projetor nunca foi usado por mim, mas decora lindamente um nicho, antes vazio, próximo ao meu lavabo.

Os dias passavam iguais. O idílio era aos sábados. Os domingos eram solitários e preguiçosos, permeados de almoços num bar próximo e, até o cair da noite, a insossa programação da televisão. Durante a semana ainda precisava desempenhar o meu papel na vida comum. Ia ao escritório, no centro, perto do Passeio Público, para comandar uma equipe de advogados. Exercia a profissão havia 35 anos, estava numa posição de destaque, era reconhecido e tinha bons clientes, mas o que eu mais queria era sair dali, ser anônimo, esquecido. Concentrar-me por inteiro na busca. A busca era a razão do meu sacrifício diário.

Numa quarta-feira qualquer, voltava de uma sustentação oral perante uma câmara do tribunal quando, farto do escritório e do seu ambiente, disse que iria embora mais cedo. Apenas para a informação dos colegas, porque o patrão era eu mesmo. E saí. Mas, em vez de me dirigir para casa, fui para a parte velha do centro. Estacionei meu carro por ali e comecei a andar a pé pelas diversas lojas de antiguidades da região. Numa delas, próxima da Rua do Lavradio, num sobrado, eu encontrei, sem querer, a peça única que faltava na coleção. A consagração de toda uma vida. O Santo Graal dos meus objetos de estimação. Era de metal, com uma cor que só o tempo poderia ter dado. A origem era remota e incerta, mas estava ali, na minha frente, ao alcance das minhas mãos. Quase não a percebi sobre uma mesinha de canto, entre uma pilha de revistas antigas e ao lado de quadros e outros objetos amontoados. Mas ao encontrá-la senti algo impossível de descrever e que jamais vivenciei de novo. A recompensa de anos. Sem dúvida, o último item que compraria. Tive esta certeza naquele instante, embora há alguns momentos eu não soubesse sequer de sua existência.

Chamei o lojista e perguntei: quanto custa isto? Ele falou despretensiosamente: doze mil reais. Um valor e tanto, pensei. Mas valia cada centavo. Doze mil fariam falta? Talvez, mas em caso de necessidade poderia vender algumas peças do acervo, cobrir o rombo.

Acomodei minha nova aquisição no banco de trás do carro, com toda a segurança. Andei devagar pelas ruas em direção ao Aterro e fui olhando a paisagem, o céu azul e as outras cores enquanto me sentia estranhamente feliz, com a sensação de haver cumprido uma missão. Se houvesse Deus, e se Ele me tivesse posto sobre a Terra, teria sido para chegar até aquele momento único. Não obstante, tive também um pouco de medo e insegurança. Passou pela minha cabeça se a sensação não se esgotaria pelo fato da compra em si. Comprar não seria melhor do que possuir para sempre? Continuaria a me sentir único, especial, privilegiado pelo fato de ter a coisa, ou precisaria continuar a busca e ir atrás de outros objetos para recomeçar o ciclo?

A proximidade com o meu prédio esbateu qualquer raciocínio mais profundo da mente. Importava agora subir ao apartamento e achar um lugar de destaque para instalar devidamente minha nova aquisição, onde ela pudesse ser exibida e, ao mesmo tempo, pudesse exercer a função para a qual fora criada. Eis a questão: colocaria na sala, ou no quarto, mais próxima de mim, para que eu pudesse ficar olhando para ela na hora que acordasse, e que fosse a última imagem a guardar antes de dormir?

Optei pela sala, ao centro de um grande móvel de jacarandá marchetado por delicados fios de ouro, encostado à parede ornada por um quadro que retrata minha bem amada esposa há tanto tempo morta, que mandara fazer alguns anos após o nosso casamento, por um artista que conhecíamos e que pintava retratos. Na época ele até insistiu em fazer o meu também, mas desejei eternizar apenas a ela em sua juventude e beleza. Juventude que durou para sempre, porque ela morreu cedo, antes dos 30 anos, com uma doença rara até hoje mal esclarecida, deixando-me a filha ainda na primeira infância, a quem consegui criar e educar para se tornar uma mulher adulta bem resolvida, dinâmica e independente.

Finalmente entronizei-a em seu lugar, e mal podia esperar a noite para colocá-la em funcionamento e entender exatamente o seu simples mas criativo mecanismo. Fiquei ali, sentado numa poltrona, quase hipnotizado em sua presença majestosa. Aguardando. Aguardando.

Fitei-a por todo o fim da tarde até o início da noite. Já havia separado o necessário para o seu funcionamento. O óleo e os fósforos. Num dado momento, cumpri o ritual. No primeiro compartimento da lâmpada, que se assemelhava a uma bacia de metal virada para baixo, a pequena tampa de encaixe de um biquinho foi removida e, dali de dentro, puxei um pouco o pavio feito de linha de algodão. No extremo oposto, um reservatório de tampa rosqueada foi aberto para colocar o óleo. Acima daquela parte, um outro compartimento, pontiagudo, tinha em seu corpo cilíndrico uma esfera de vidro acoplada a uma plataforma metálica. Do centro da esfera, que possuía pequena abertura lateral, saía também um pavio para a chama que a iluminava por dentro, o que certamente projetaria no ambiente uma linda luz azul.

O óleo, ao ser queimado, aquecia uma serpentina que, por um mecanismo interno, fazia a plataforma sobre a qual se prendia a esfera de vidro girar. Assim, além da luz azul, os desenhos abstratos no próprio vidro também se amplificavam, traçando marcas mágicas em volta. Demorava alguns minutos para que o efeito acontecesse.

Fiquei esperando. Lentamente o sistema aqueceu depois de acesas as duas chamas e, de repente, o cômodo, já iluminado pela luz tênue e noturna, começou a girar, girar, girar, trôpego daquela claridade azul confusa. Era, ao mesmo tempo, um efeito mágico e incômodo, como a evocar a magia do distante oriente, da Pérsia ou do Azerbaijão – era incerta a origem do insólito aparelho.

E eu me detive ali, agora em presença apenas da luz azul e dura, hipnotizado, sonolento, tonto, vendo como as coisas a minha volta mudavam de cor, para mudarem de forma e até de natureza. Era como se tudo houvesse ganhado vida e movimento, por efeito da esfera acesa e girante. Comecei a passar mal, a sentir os sentidos me faltarem, deixei-me cair numa poltrona e, posso jurar, conservando os olhos semiabertos, vi sair da chama de dentro da esfera algo como uma forma humana, pequena, que se pôs de pé ao lado do móvel em que se apoiava a lâmpada e, aos poucos, foi crescendo e se adensando, até poder ser distinguida perfeitamente como um homem. Um homem alto, de vestes exóticas, com uma barba e bigode finos, um nariz aquilino com uma joia na columela. A pele dele era estranha e me provocava arrepios, porque era decididamente azul. Um azul do mesmo tom que a luz da lâmpada que continuava a girar.

Ele chegou perto de mim e eu, que pensava haver dormido e sonhado por um instante, procurei me conservar em vigília para melhor apreciar e procurar entender aquele fenômeno. Não sei se me deu medo ou mera curiosidade. O ser azul se aproximava ainda mais e, quando procurei acordar da madorna, percebi estar bem lúcido. E ele falou para mim:

“Sou Ahriman, o espírito que ficou séculos preso nesta lâmpada. Vim porque me chamastes. Vou te conceder reviver tua vida inteira, sabendo, no entanto, o que sabes hoje. Este é o único presente que posso dar-te, antes que me afaste da lâmpada e vá correr novamente o mundo. A condição é que a deixes acesa até eu estar longe.”

Eu só podia estar louco. Uma tontura e um abatimento, mais fortes que minha razão, me mantiveram preso à poltrona, cujas fibras agora como que feriam meu corpo. Senti-me nu, apesar de estar vestido, e o ar ao meu redor era gelado e denso. Perguntei ao estranho que se apresentara:

“Como assim? O que você me oferece pode ser sublime e horrível. Qual será a consequência da minha aceitação ou recusa?”

Respondeu-me:

“És absolutamente livre para escolher. Se não o quiseres, viverás até a morte inevitável e marcada. Se quiseres, no entanto, será tudo igual. Tua vida está escrita. Não podes mudar tua condição de hoje, mas nada será surpresa. Dou-te a oportunidade para reviver tudo. Tuas dores e teus amores. A vida é um mistério e uma aventura enquanto se desenrola, mas se é repetida, torna-se previsível e tediosa. Tens de responder rápido, enquanto a esfera gira.”

Com o resto de razão que me assistia, comecei a pensar na oferta do espírito mágico. Reviver a minha vida toda com a consciência que eu tenho hoje, sabedor de todos os fatos que me aconteceriam. Que tentadora proposta! Repetir todas as emoções e amores da minha vida. Rever meus avós na infância vivida na grande casa suburbana onde passava os dias antes de começar a escola. A atenção dos meus pais, as primeiras lições, os amigos da adolescência, os amores, a emoção que senti quando conheci aquela que viria a ser minha esposa. O nascimento de minha filha, cada realização profissional, as conquistas materiais e os sucessos no tribunal. Tudo aquilo me empolgou e me deu como uma injeção de vida e de perspectiva.

Minha história não se resumia a ocorrências esparsas, mas era composta de longos dias que estavam ali prontos a serem revividos, sabendo como se sucederiam, qual seria o resultado das minhas diversas ações. Eu, quis saber do gênio, seria obrigado a repeti-las?

“Sentirás como um ímpeto a te guiar. Não te afastarás do que fizestes. Era tudo para ser como foi. Eu disse: estava escrito” – respondeu-me o estranho visitante.

Se era assim, se era apenas isso, eu fiquei receoso de aceitar a oferta da entidade azul. Afinal, com a convivência com meus avós viriam também as broncas que recebi deles quando subia em árvores ou me demorava a vir jantar. Depois eles morreriam, um seguido do outro, na penúria em que viveram nos seus últimos anos, e viria a casa suburbana a se deteriorar até ser vendida e demolida de forma inclemente para a construção de um edifício sem-graça. As vezes em que as lições escolares me intimidaram e a dificuldade sempre presente na matemática, a angústia que sentia durante as provas. As brigas com amigos da adolescência, antes tão queridos, e os rumos diversos que cada um tomou na vida a ponto de nos distanciarmos e não guardarmos mais qualquer relação. Os amores que me fizeram sofrer, até o que trouxe o sofrimento final da solidão que já dura tantos anos. Rever a esposa traria também de volta a sua doença, vê-la definhando na cama, os médicos sem esperança quando os tratamentos já não traziam qualquer resultado prático – apenas repetidos padecimentos. O nascimento de minha filha, seguido de seu crescimento, faria com que eu revivesse cada preocupação, cada dúvida frente ao seu desenvolvimento, entendendo que não há fórmula pronta para a criação de filhos. O quadro seria pior após a morte da esposa, quando me senti sozinho, desnorteado e, por alguns momentos, pensei em desistir das tarefas, acometê-las a outros que fossem mais capazes que eu. Até alcançar a solidez de meu escritório, sentiria novamente muitas decepções com os clientes que reclamavam de coisas que estavam totalmente fora de meu alcance, das rescisões contratuais inesperadas, daqueles a quem me dedicava no trabalho e não me davam, no tempo certo, o devido reconhecimento ou retribuição. Todas as realizações profissionais viriam acompanhadas também das vezes em que fracassei, no direito ou nas relações humanas, por conta das imprevisibilidades da vida. As conquistas materiais implicariam em realizar, de novo, todos os trabalhos extenuantes, repetir as horas em que não podia me dedicar a mais nada, a não ser ganhar a vida enquanto, no fundo, tinha um sentimento incômodo de que a perdia, afastando-me da minha verdadeira essência. Os sucessos no tribunal me fariam reviver também os fracassos, quando a lei ou os juízes foram injustos para compreender a situação das pessoas que a mim confiavam sua vida, sua liberdade ou seu patrimônio. Cada antiguidade comprada seria previamente sabida, esvaziando o ato da expectativa e da procura de qualquer emoção. Até mesmo saberia, desde a tenra idade, do momento em que iria encontrar a lâmpada cuja luz azul se projetava agora em minha sala.

Decididamente recusei a oferta do espírito misterioso. Suas feições se conservaram impávidas, não demonstrando qualquer reação à minha recusa. Aos poucos ele se afastou sem dizer nada. Foi se integrando à luz azul da lâmpada, se desfazendo, se tornando cada vez mais unido a ela até que, num dos giros da esfera de vidro, tornou-se indistinto das formas insólitas que ela projetava. Sumiu. Eu ainda fiquei largado naquela poltrona por muitas horas, esquecido de mim mesmo, apenas pensando na experiência noturna até acordar de manhã, dolorido da posição em que me mantive, sem saber ao certo se tudo aquilo fora um delírio, um sonho, ou se realmente me passou.

Levantei-me pronto para encarar mais um dia que seria diferente de todos os dias passados, uma surpresa completa, planejando começar a escrever um tratado definitivo e revolucionário sobre as consequências jurídicas da ressurreição dos mortos.

…………

*A Verdade nos Seres, livro de poemas do Daniel Marchi, pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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