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Crônicas periciais

Além da Razão – Uma Expedição ao Coração do Sobrenatural

Publicado

Autor/Imagem:
Amilcar da Serra e Silva Netto - Texto e Imagem

Naquele ano distante, ainda nos primeiros passos da minha carreira como perito criminal, encontrei-me imerso em uma realidade difícil. Estávamos em um Estado da Federação marcado pela carência de infraestrutura — especialmente na rede viária e na segurança pública. Como se não bastasse, o verão se mostrava implacável, com dias inteiros submersos em chuvas intermináveis que transformavam estradas em rios lamacentos, isolando as cidades mais remotas e formando uma paisagem de alagamentos. Foi nesse cenário úmido e sombrio que chegou até nós o pedido para atender a uma ocorrência: um cadáver enforcado, que exigia nossa apresentação em uma dessas remotas cidades esquecidas do resto do mundo.

Sem possibilidades de transporte aéreo e com as viaturas da Polícia Civil incapazes de enfrentar as péssimas condições das vias, nossa salvação surgiu na forma de uma oferta inesperada. O fazendeiro, dono das terras onde o corpo foi encontrado, colocou à nossa disposição um motorista que conhecia a região e uma caminhonete robusta com tração nas quatro rodas — um dos poucos veículos capazes de enfrentar a jornada que nos aguardava. Sem outra escolha, aceitei a oferta e organizei a logística do modo possível, carregando somente os apetrechos periciais indispensáveis: na cabine apertada, que só comportava três pessoas, embarquei junto com o motorista e guia, encarregado de conduzir o veículo, enquanto, além da função de perito criminal, também assumia a de auxiliar de perícia, assim juntando o útil ao agradável, pois, com uma pessoa a menos para dividir espaço, a viagem seria mais confortável. Deste modo, eu e o motorista partimos, solitários, em direção à inóspita e distante região de Nhacolândia, com uma jornada estimada de doze horas, entre ida e volta.

Ao passarmos pela cidade de Rio Negro, o coração da região onde a perícia seria realizada, o delegado local se juntou a expedição, trazendo sua viatura e alguns de seus agentes. Contudo, as condições climáticas precárias e a estrada ruim confirmaram nossos temores: a viatura do delegado atolou-se logo adiante. Prosseguimos então, apertados na cabine da caminhonete – eu, o delegado e o motorista – em meio a um cenário desfavorável.

Através de caminhos sinuosos e traiçoeiros, a nossa jornada prosseguiu, impulsionada pela firmeza do nosso propósito. A cada curva, a cada ponte precária, a cada obstáculo que se erguia em nosso caminho, a promessa de encontrar uma comitiva de peões – nossos guias para o local sinistro – nos impulsionava. O crepúsculo pintava o céu com tons de laranja e roxo, quando, por volta das nove e meia da noite, a esperança, quase esvaída, renasceu. À beira da estrada, surgiu, como um oásis no deserto, a tão esperada comitiva. Dez figuras, silhuetas contra a escuridão, compunham o grupo: o Capataz, líder resoluto; o Pião Principal, seu braço direito; seis Vaqueiros, homens curtidos sob o sol escaldante, condutores da boiada; e dois Campeiros, mestres da logística, responsáveis por erguer acampamentos, cuidar dos animais, alimentar a comitiva e solucionar os imprevistos que a longa viagem impunha.

A partir daquele instante, então liberta do fardo do gado, que tinham sido deixados a residir em uma fazenda vizinha, a comitiva se metamorfoseou em uma procissão solene, com o capataz à frente, guia experiente que nos transferiu em fila indiana, como um navegador que liderou sua tripulação através de águas turbulentas. Pois, a partir daquele ponto em diante, saímos da estrada e começamos a atravessar um vasto território alagadiço, cujo caminho seguro estava submerso, apenas acessível ao conhecimento de quem já conhecia a região como a palma da mão, onde cada passo era uma aposta na sorte e no destino.

Quase às vinte e duas horas, alcançamos uma região mais alta, onde a paisagem se erguia como um cenário teatral. Foi então que nos deparamos com uma árvore frondosa que sustentava, em um de seus fortes galhos, o corpo de um ser humano, suspenso no ar, pendurado pelo pescoço, como uma sombria oferenda aos deuses. Seus pés, inertes, emparelhavam a cerca de um metro e meio do solo, como se a própria morte tivesse sido suspensa no tempo.

Neste momento, lembro-me de ter olhado para o relógio, registrando o início da perícia às 22h30. Como não havia trazido um auxiliar para ajudar nos trabalhos de levantamento de local, peguei uma câmera e comecei a capturar o cenário, alternando entre fotos panorâmicas e de detalhes. Contudo, chegou o momento em que seria preciso remover o corpo de sua posição original. Solicitei ajuda a alguém da comitiva, mas, em quase uníssono, movimentaram os braços, traçando um símbolo de cruz no ar. Esse gesto transcendia a mera religiosidade; era uma recusa implícita, um recuo diante do mistério da morte.

Os olhares se encontraram, formando uma teia invisível de hesitação, até que todos convergiram em um único indivíduo. Assim conheci o capataz, o líder daquele grupo silencioso e supersticioso. Em poucas palavras, mas significativas, ele expressou uma opinião profundamente enraizada: não se deve tocar nos mortos. Segundo ele, mover o corpo poderia enfurecer a alma. Conheciam bem os desejos do falecido, que ansiava por ser enterrado na terra onde nasceu, cresceu e agora falecera. Quem tentasse impedir esse último desejo, que se alertasse, pois, enfrentaria sérias consequências.

Então, sem o apoio dos membros da comitiva e percebendo que as extremidades inferiores dos pés da vítima se encontravam a cerca de 1,5 metros do chão, solicitei ao condutor que estacionasse a picape em reversão, de modo a alinhar a sua caçamba com as pernas pendentes do desafortunado. Com a assistência do delegado e minha própria força, procedemos ao corte da corda que o enforcava. Como o corpo se encontrava em rigor mortis, ele desceu ereto sobre a caçamba da picape, sendo depois deslocado como se transportássemos um refrigerador, acomodando-o sobre a superfície do veículo.

Em seguida, coletei as provas fotográficas e fiz as anotações necessárias, concluindo assim os meus trabalhos periciais por volta das 23h30. A comitiva então nos guiou de volta por uma trilha sinuosa até a estrada, no ponto onde havíamos sido recebidos anteriormente. Durante o trajeto de retorno, ouvimos constantes premonições de má sorte e presságios de desastres iminentes, alertando-nos de que deveríamos ter deixado o cadáver para ser sepultado na região local, em vez de transportá-lo para a Capital.

Quando restavam apenas dez minutos para a meia-noite, atingimos nosso destino, e a comitiva se despediu, não sem antes nos lembrar, pela última vez, de que jamais deveríamos transportar o corpo para a Capital. Poucos momentos depois, tivemos de parar na primeira ponte, uma vez que uma vaca se encontrava bloqueando a passagem, com uma de suas patas presas entre as tábuas de madeira. Olhei para o relógio: exatamente meia-noite. Quando voltei a olhar para trás, a comitiva havia desaparecido como fumaça no ar, deixando-nos sozinhos na escuridão da noite.

A partir daquele momento, os desafios se sucederam como um desfile interminável de percalços. Uma árvore, imponente e rebelde, se despencou sobre a estrada, bloqueando o caminho como uma sentinela obstinada. Em seguida, o chão se transformou em um atoleiro traiçoeiro, onde cada passo parecia um convite ao desastre. As pontes, já cansadas pelo peso do tempo, ameaçavam desmoronar a qualquer instante, balançando como se compartilhassem o medo de ceder. E, para adicionar trama de desventuras, uma tempestade repentinamente se abateu sobre o cenário, trazendo relâmpagos que iluminavam o céu e ventos uivantes que ponderavam sussurrar advertências. Cada obstáculo era uma nova camada de drama, tornando a jornada um épico de resiliência e coragem.

A jornada que se esperava ser uma odisseia de doze horas, ida e volta, havia se transformado em uma interminável provação de 24 horas quando, finalmente, alcançamos a cidade de Rio Negro, onde paramos na delegacia para deixar e se despedir do delegado, bem como recolher as requisições necessárias para os nossos exames de local e necroscópico. O cansaço e a fadiga se haviam apossado de nós, como uma névoa pesada que pairava sobre nossas cabeças.

Ao deixarmos a delegacia, a crença de que o pior já havia passado em nossos corações era uma miragem, uma doce ilusão tecida pela ingenuidade. O motorista, com um olhar de pânico, logo descobriu que um vazamento traiçoeiro se instalara no sistema de alimentação de combustível, uma ferida aberta que nos impedia de alcançar a Capital. O veículo, agora, tornara-se um navio furado, à mercê dos caprichos de um destino que se divertia em nos atormentar.

Diante dessa nova adversidade, e com um espanto crescente, decidimos buscar refúgio em uma funerária, como se ao tentar mostrar respeito ao defunto pudesse oferecer a solução para nossas desventuras. Lá, adquirimos o maior caixão que conseguimos encontrar; o corpo, agora inchado e em um estado grotesco, mal cabia em seu compartimento original. A tampa, relutante, parecia querer se rebelar, como se desejasse libertar o macabro conteúdo que guardava. Os cravos de fixação, impotentes, eram meros espectadores da força que se escondia em seu interior. Era como se a própria morte, em uma risada cruel, nos observasse.

Após cobrir o caixão com uma lona, seguimos para uma oficina mecânica, onde a espera por consertos se arrastou por intermináveis cinco horas. Somente então pudemos retomar a viagem, como se a própria estrada zombasse de nós em cada curva.

Quase alcançando a divisa do município onde, segundo sussurros, o defunto desejava ser enterrado, um peão que caminhava à beira da estrada nos pediu carona. Reduzimos a velocidade, e ele pulou para dentro da caçamba, como uma sombra que se unia ao nosso destino sombrio. Seguindo por uma estrada esburacada e repleta de trepidações, a proximidade do rio que marcava a divisa parecia um aviso sombrio. Na entrada da ponte um grande buraco apareceu repentinamente, e senti minha cabeça se chocar contra o teto da cabine. Em seguida, um grito, um grito que parecia emanar do próprio abismo, irrompeu do fundo carroceria do veículo. Olhei para trás e percebi que o carona havia saltado do veículo.

Naquele instante, uma sensação de desespero me invadiu. Era como se o destino tivesse selado nossa sorte, cumprindo o presságio do chefe da comitiva. Acreditava que nosso carona se ferira, e que não poderíamos mais escapar daquela terra maldita, obrigados a retornar ao município de Rio Negro.

Porém, não podíamos parar sobre a ponte. Atravessamos a divisa, levando o corpo, e retornamos a pé para prestar socorro ao carona. Ele se encontrava atolado na lama macia, sem sérios ferimentos, apenas algumas escoriações que pareciam insignificantes diante do nosso horror. Recusou-se a ser levado a um posto de saúde, como se a própria morte o tivesse marcado, ao ver a tampa do caixão saltar e expor o cadáver e assim, naquele cenário de desespero e ironia, o carona não quis nos acompanhar e seguimos juntos, com o peso da incerteza que ainda teria algo por acontecer.

E assim, continuamos em frente, carregando o corpo e o desconhecimento do nosso destino, esperando por algo pior. A estrada se estendia diante de nós, uma serpente sinuosa que nos levava para casa. Porém algo havia mudado, o sol, que a dias não aparecia, começou a se pôr, lançando uma luz dourada sobre a paisagem, e por um momento, esquecemos de nossas desventuras. Mas apenas por um momento.

Ao término daquela longa e tortuosa jornada, deixamos o corpo no IML, e um alívio estranho e superficial pareceu tomar conta de mim. A câmara fria, em sua solidão descompromissada, sugava os resquícios do que vivemos, quase como se nada daquilo tivesse acontecido. Mas, enquanto me afastava, cada detalhe da viagem retornava à mente, como se não fossem simples infortúnios, mas ecos de algo intangível que desafiava minha compreensão racional. Poderiam mesmo ter sido apenas coincidências aterradoras? Ou existia alguma força misteriosa naquela terra alagada e no olhar resoluto do capataz, como um aviso que ignoramos?

De alguma forma, o simbolismo daquele instante em que cruzamos a ponte da divisa para fora do município assombrava meus pensamentos. As desventuras que haviam se sucedido como uma corrente sem fim – a árvore caída, o atoleiro traiçoeiro, a vaca bloqueando a passagem, e até a tempestade que se abateu sobre nós – pareciam milagrosamente encerrar-se assim que o corpo atravessou a divisa. A partir daquele ponto, o trajeto se desenrolou sem maiores incidentes, como se uma linha invisível tivesse sido traçada entre a razão e a superstição, entre a lógica do meu ofício e as crenças daquela comitiva silenciosa.

E se, de fato, tivéssemos respeitado o limite do município? Se tivéssemos parado a caminhonete antes de cruzar a ponte? Será que o carona que saltou da caçamba teria sido ferido mais gravemente – ou até perdido a vida – como um sacrifício destinado a impedir que o corpo ultrapassasse a divisa, forçando-nos a retornar? Esse pensamento me atormentava. Teria ele encontrado um destino mais trágico caso não tivéssemos ignorado aquele último presságio e atravessado a ponte?

Ao cruzar a ponte com o cadáver, interrompemos nós mesmos a sequência de desventuras ou simplesmente seguimos um destino já traçado? Esses pensamentos permanecem, como uma dúvida insistente entre o mundo sólido da ciência e a fronteira nebulosa do inexplicável. Era impossível não sentir que, naquela noite, a linha entre razão e superstição fora transposta – talvez para nunca mais ser esquecida.

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