Escrever sobre o desgoverno e a respeito das mazelas do Brasil pós-Bolsonaro está ficando chato e repetitivo. Por isso, estou tentando mudar de rumo, mas as atrocidades enfrentadas pelo País nos obrigam a repensar nossos propósitos. Na verdade, não pensamos 24 horas por dia em Jair Bolsonaro ou nas bobagens ditas e produzidas a partir do Poder. Entretanto, tudo que laboramos ou imaginamos nos levam a esse contexto. Embora insistamos na crítica e nas cobranças, queremos avançar de “patamá“. Só não estamos conseguindo. Tentamos, tentamos, mas, como o time do Flamengo (o maior do mundo) em outros tempos, temos ficado no cheirinho.
Disposto a escrever sobre abobrinhas, acordei cedo na quarta-feira (dia da posse de Joe Biden) e segui para uma clínica radiológica para um daqueles exames horrorosos de ressonância magnética. Enquanto aguardava, elucubrava um tema mais ameno e de fácil degustação. Cheguei a fechar os olhos enquanto viajava com os devaneios. De repente, me dei conta de que havia um aparelho de televisão ligado bem em frente à minha cadeira. Entretido, achei que o programa pudesse ajudar. Comecei a prestar atenção e percebi que a emissora sintonizada era a do bispo Edir Macedo e o programa em cartaz – aliás no início – era o “jornalístico” Hoje em Dia, comandado pelo apresentador César Filho. Nada contra a pessoa, mas tudo contra a fleuma trumpista ou “recordiana” de se mostrar superior.
Com dez ou 15 minutos de programa fiquei absolutamente surpreso com o que via e ouvia. As dez primeiras matérias versavam sobre assaltos, assassinatos, estupros, agressões a moradores de rua e um feminicídio. Pior do que o noticiário macabro para uma manhã ensolarada foram as três chamadas seguidas dos intervalos informando que, em instantes, Trump deixaria a Casa Branca. Parece que o diretor e os bispos que comandam a emissora com mão de ferro esqueceram que o fato do dia, naquela mesma manhã, no horário norte-americano, era a posse de Biden como 46º presidente dos Estados Unidos da América.
Ameacei reclamar na recepção, mas, felizmente, fui contido pelo ainda latente espírito democrático. Na verdade, fiquei temeroso de ser apedrejado simbolicamente pelas pessoas da sala de espera, as quais certamente me confundiriam com um defensor remunerado da TV da família Marinho e que, jocosamente, é chamada de Globo Lixo pela turma de hoje (os direitopatas), mas já foi denominada de golpista pela turba de ontem (os esquerdopatas). Como não me alinho a nenhum deles, aproveitei minha insignificância, levantei a máscara na altura dos olhos e fingi o sono dos justos. Desonestamente despertei com o chamado da atendente.
Parto do pressuposto de que nem Deus agradou a todos para tentar refletir sobre o temor dos dois extremos com a empresa da família Marinho. Deve ter alguma coisa de muito podre nos reinos petista e bolsonarista para unir em uma mesma guerra duas correntes que se odeiam. Será que ê o salário do Bonner? Voltando ao exame, dentro daquela barulhenta máquina de moer seres humanos, pensava na diferença entre uma e outra empresa. Cochilei, fingindo não saber onde estava, até que me dei conta do óbvio. Uma das emissoras, que já foi xodó dos generais, hoje é definida pelo capitão como o diabo travestido de jornalistas, pagos – na verdade bem pagos – para derrubá-lo. A outra é vista como protótipo de Jesus na terra para salvá-lo. Sinceramente, prefiro o inferno das TVs pagas, nas quais escolho o que quero assistir, na hora e local que bem entender, sem a necessidade de recolher dízimos ou similares.
O que mais estranho na televisão do bispo são os chamamentos ao Mestre. Falam de Jesus – como todos deveríamos fazer – sem qualquer referência a Deus, conceito de Ser Supremo presente em diversas religiões monoteístas, henoteístas ou politeístas, sendo geralmente definido como o espírito infinito e eterno, criador e preservador do Universo. Para um leigo como eu, é o Pai de todos nós, inclusive de Jesus. Não entendo, mas deve ter alguma boa razão o esquecimento deliberado da maior figura divina. Talvez não gostem de hierarquia por lá. É o bispo e ponto final.
Abomino comparações. Entendo que cada um deve limitar seu quadrado e, a partir dele, criar seus próprios conceitos, produzir suas verdades, doutrinar seu povo e ganhar dinheiro como lhe convém. Como afirmam os bolsonaristas, a Globo “mamava” nas tetas do governo. Pode ter “mamado”, mas deixou de “mamar” para sobrar mais cascalhos para os que exaltam e bajulam desavergonhadamente o presidente. É mentira? A Globo sobreviveu e, ao que parece, continua fazendo jornalismo do tipo doa a quem doer.
Pode não ser o melhor jornalismo do mundo, mas, convenhamos que, nesses tempos de mentiras vaporosas, é um dos poucos que ainda tem jornalistas em número suficiente e coragem de questionar os “feitos” do governo de Jair Bolsonaro. É primário discutir a respeito da qualidade do jornalismo brasileiro, na medida em que todos fazem igual. Faço questão de repetir que nunca recebi um tostão da família Marinho. Por essa razão, tenho absoluta isenção para afirmar que, lamentando decepcionar esquerdopatas e direitopatas, assisto diariamente o jornalismo da Vênus Platinada, porque, além de ser basicamente como o de outras emissoras, estou certo de que jamais ouvirei um poema lírico em homenagem ao presidente, declamado em tom alegre e entusiástico.
Não que um presidente da República não mereça uma ode. Lamentavelmente, o atual e os imediatamente anteriores não merece ou mereceram. Estou inteiramente à vontade para jurar que não assisto às TVs do bispo e do Bolsonaro. A contragosto, consigo parar em alguns – muito poucos – programas desopiladores de fígados do SBT e da Rede TV. Quando não gosto do que anunciam – e não gosto de muita coisa -, começo a zapear até apear no jornalismo e futebol globais e, eventualmente no telejornalismo da Band. Em tempo: minhas incursões pela televisão são esporádicas. Não tenho tempo ou aptidão para ociosidade, apesar de ela já ser remunerada, tampouco vocação para crítico. O que não concebo é vestir – sem saber a razão – o roupão dos críticos (esses sim têm a televisão como obrigação) e, com uma bandeira brasileira enrolada no quadril, gritar Globo Lixo da janela do apartamento.
Seria mais honesto nos limitarmos a uma bandana verde e amarela e, mostrando a cara e a coragem, gritarmos: fora mentirosos, fora vendilhões, fora abutres. Certamente teria mais eco e poderia render manchetes até nas emissoras que odiamos, mas que, às escondidas, assistimos entusiasmadamente. Globo Lixo é para quem esconde que ainda não se acostumou sem os novelões das cinco, das seis, das sete e das nove e sem o boa noite milionário de Willian Bonner e de Renata Vasconcelos. Não é vergonha assumirmos nossos gostos. Se me permitem, vida longa à Globo Lixo. Queiram ou não, é a melhor que temos.
*Wenceslau Araújo é jornalista