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Aleph, como o Alfa e o Ômega, é a versão caseira da divindade do Velho Testamento

Muitas pessoas se identificam com os textos de um autor, mas apenas umas poucas se identificam sem reservas com ele. Era o caso de Tomás, o borgiano.

Sua admiração pelo Mestre Cego, sua referência habitual a Jorge Luis Borges, crescera desde a adolescência, até que Tomás passou a definir sua personalidade em relação a ele. Não apenas em termos literários – o que já não era fácil, dadas a delicadeza e a sensibilidade do escritor argentino, sua mescla perturbadora de livros e autores reais e imaginários, e por aí vai –, mas também em opiniões políticas, de um conservadorismo atroz. Sem falar de sua indumentária, adequada a um idoso dos anos 1960-1970. Era assim que, aos 40 anos, vestia-se Tomás, na São Paulo de 2015.

Talvez a incorporação borgiana tenha começado pouco depois de Tomás dar-se conta de sua prodigiosa memória. Quando lhe caiu nas mãos o conto Funes, el memorioso, a identificação foi imediata. Não com o personagem – apresentado como uma espécie de idiot savant, incapaz de elaborar a profusão de informações que detinha – e sim com o autor. Tomás não tinha apenas a memória de um Funes, mas se considerava apto a pensar e a escrever como Borges. Sem dúvida não tão bem quanto ele, mas na linha dele.

Quando não estava escrevendo contos à Borges, Tomás buscava os amigos e a namorada – e, com sua prodigiosa memória, matava-os de tédio. Afinal, era chatíssimo conversar com alguém capaz de reproduzir cada palavra, ou descrever cada inflexão, cada olhar, ocorridos na véspera, ou meses antes. Com a namorada era ainda pior, ele se lembrava de todos os detalhes eróticos e passava horas descrevendo-os – o mesmo tempo, diga-se, que os dois haviam dedicado à transa. Com isso, não havia tempo para novos jogos sexuais, para exasperação da moça.

Certo dia, Tomás calhou de comparar a memória funesiana e o mapa 1:1 descrito no miniconto Del rigor en la ciencia. Uma memória que reproduzia com exatidão o que havia ocorrido, ou o que ele dissera, pensara ou sentira nas 24 horas anteriores – e que exigia outras 24 horas para fazê-lo com perfeição – podia ser comparada ao célebre Mapa do Império, “que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele”. Tomás sabia que uma memória como a de Funes não era apenas criação literária; a sua se aproximava bastante daquele modelo. E então veio o insight: e se muita coisa que era atribuída à imaginação do Mestre Cego fosse a sua descrição de fenômenos naturais, talvez com uma dimensão mágica mas nem por isso menos reais? Talvez as palavras sutilmente bordadas pelo autor fossem um recurso para resguardar o mistério enquanto simultaneamente o revelava.

Tomás sabia qual texto o desafiava, como um Graal, e, justamente por isso, iria guiá-lo em sua busca: O Aleph. No conto, há um ponto preciso, no sótão de uma casa na Argentina, de onde se pode ver todo o Universo, as coisas passadas, presentes e futuras. E se o Aleph não fosse apenas fruto da imaginação do Mestre Cego, e sim algo real, existente em cada moradia, apto a ser encontrado? Talvez (e essa hipótese fez Tomás tremer de medo e expectativa) o Aleph fosse, literalmente, o Alfa e o Ômega, a versão caseira da divindade do Velho Testamento, que não podia ser visto por olhos humanos. E se fosse essa transgressão que havia roubado a luz dos olhos de Borges? Estaria ele disposto a pagar o preço aparentemente pago pelo Mestre Cego de Buenos Aires?

Tomás afastou-se da namorada e dos amigos e trancou-se em casa. Seu Graal, o Alfa e o Ômega, o esperava.

Dias depois, o odor insuportável levou os vizinhos a avisar a polícia. O corpo de Tomás, já em processo de apodrecimento, foi encontrado em um canto da sala. Duas coisas chamaram a atenção dos legistas. A primeira foi a ruptura de seus globos oculares com uma forte hemorragia, ou seja, algo o cegara antes mesmo do fim; a segunda, a expressão de surpresa e encantamento em suas feições, tão intensa que resistira ao rigor da morte.

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