Era 1973, a tímida Alice ensaiava passos ao som de “O Vira”, dos Secos & Molhados, nos intervalos do emprego de balconista na loja de tecidos. No final do expediente, caminhava até o ponto de ônibus, bem ali na equina. Direto para casa, da casa para o trabalho na manhã seguinte.
Alice estava na cidade há menos de um ano. Morava com o irmão, que havia chegado à capital logo após a conquista do tricampeonato. Do pouco que ganhava, separava algumas notas para as despesas da casa e o restante entregava ao irmão, que juntava mais um tanto para enviar para a família lá em Codó, no Maranhão.
Pois foi numa segunda-feira, princípio de abril ou maio, que a mocinha reparou em um rapaz de camisa branca e calça xadrez, sapatos gastos, mas que ainda davam para cobrir bons quilômetros. Os cabelos jogados para o lado cobriam-lhe metade da testa, enquanto o par de costeletas quase negras conferia àquele bonito rosto um ar de mais velho.
A moça percebeu a agitação do homem, que tragava a todo instante um cigarro, enquanto olhava para os lados, como se fugisse de algo. E foi justamente em um desses momentos em que ele notou aquela jovem. A primeira troca de olhares. O rapaz jogou a guimba no chão e a apagou com o sapato e sorriu para Alice. Tímida, ela abaixou o rosto e escondeu o sorriso junto aos seios.
Não tardou, aquele homem entrou num ônibus, enquanto Alice o observava. Ela o acompanhou com o olhar e, logo em seguida, percebeu que o seu coletivo havia chegado. A mulher subiu, pagou a passagem e, sem local para se sentar, foi em pé até descer próximo à sua residência. Tempo suficiente para conjecturar muitas coisas.
Na terça-feira, Alice achou que o dia demorou mais do que o devido, mas, por fim, deu a hora de sair. Ansiosa, seus passos foram mais ligeiros, até que chegou ao ponto de ônibus. O rapaz não estava lá. Será que ele já teria pegado o ônibus ou, pior, tudo havia sido apenas um sonho? Tal devaneio, todavia, foi deixado de lado assim que ela sentiu alguém lhe tocar o ombro. Alice se virou e deu de cara com aquele homem, que lhe sorriu pela segunda vez.
— Prazer, me chamo Pedro.
Alice, surpresa, não conseguiu esconder tamanha felicidade e, então, ofereceu seu melhor sorriso. Ela levou sua mão até a do homem, que já estava com a sua estendida. Os dois se cumprimentaram, mas não tiveram muito tempo para conversarem. Dessa vez, foi o ônibus da mulher que chegou primeiro. Ela entrou e, assim que subiu o primeiro degrau, acenou com a mão. Pedro beijou a palma da própria mão e acenou de volta.
Após quase dois meses de conversas curtas naquele ponto de ônibus, Pedro segurou as mãos de Alice e, olho no olho, a pediu em namoro. A moça, que há tempos desejava aquilo, sorriu e disse sim. O homem, tomado de coragem, aproximou o rosto e beijou a face da mulher, que se sentiu respeitada.
— Caso não seja inapropriado, gostaria de ir até a sua casa amanhã para oficializarmos o namoro. Naturalmente, desde que seu irmão concorde.
Dia seguinte, uma sexta-feira, pela primeira vez, o casal tomou o mesmo ônibus. Sem local para sentar, os dois foram em pé, lado a lado, até descerem próximo à residência da mulher. Apesar do curto trajeto, ao qual Alice estava acostumada, naquele dia pareceu levar horas.
O irmão da moça, que já sabia o motivo da presença daquele homem, aceitou com bons olhos o namoro. Pedro convidou a namorada e o cunhado para assistirem a um show que aconteceria no dia seguinte, um sábado. Ambos aceitaram o convite, enquanto jantavam e tomavam suco de groselha.
O sábado chegou, mas nada do Pedro aparecer. Certamente algum imprevisto, Alice e o irmão imaginaram. Sem telefone para receber recados, a mulher passou o final de semana angustiada, até que, na segunda-feira feira, foi trabalhar na loja de tecidos. Ainda preocupada com o sumiço do agora namorado, a garota conseguiu esconder seus sentimentos, pois precisava atender a clientela.
Final de expediente, Alice, passos apressados, foi para o ponto de ônibus. Não encontrou Pedro e, então, resolveu esperar por algum tempo. Veio seu ônibus, mas o deixou ir. Pegaria o próximo. Nada do namorado. Perdeu o segundo, o terceiro, mas não pode deixar o quarto. Subiu os degraus e lançou o olhar desolado para fora.
No dia seguinte, Alice também esperou pelo namorado, mas ele não apareceu. Fez o mesmo no outro dia. Todavia, nenhuma notícia do Pedro. O que teria acontecido com ele? Ela chorou o que precisou chorar, até que as lágrimas, exaustas por serem derramadas, voltaram-se para o coração amargurado da mulher.
Ainda hoje, 2024, as pessoas que frequentam o mesmo ponto de ônibus observam aquela velha, cabelos brancos, face enrugada. Seus olhos, ansiosos, parecem esperar por alguém que, talvez, nunca volte. Tempos de chumbo.