A definição básica de retidão na administração pública é simples, clara e objetiva. Conforme o que está escrito, ela estabelece que não se pode agir em desacordo com a lei. O artigo 37 da Constituição de 1988 traz expressamente cinco princípios por meio dos quais os administradores devem zelar por seus atos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Partindo desses preceitos, será o Supremo Tribunal Federal, particularmente o ministro Flávio Dino, o patinho feio da história de exigir dos deputados e senadores medidas de transparência e de rastreabilidade na execução das chamadas emendas PIX?
Ou os corvos da fábula são a Câmara e o Senado, cujos integrantes criticaram ferozmente o que eles entendem por interferência do STF na destinação livre de recursos públicos, sem a necessidade de se indicar um programa ou convênio específico? E o que dizer do Executivo, responsável pela liberação das emendas, mas que deu uma de avestruz? Ou a locupletação era generalizada ou havia alguém tentando varrer para debaixo do tapete o verdadeiro motivo da crise gerada pela suspensão das emendas. Para os leigos – eu sou um deles -, a reação dos parlamentares foi assustadora.
Prometer revide à exigência de clareza no uso do dinheiro do trabalhador pareceu um sinal evidente de que os planos enviesados estavam definidos. Desconfianças à parte, entendo como natural a obrigação de os congressistas informarem a quem de direito para onde vão os recursos do Erário. Foi o que decidiram decidir em almoço nessa terça-feira (20) os ministros do STF, os presidentes da Câmara e do Senado e os representantes do governo. A partir de agora, as emendas deverão respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. E por que não era assim, antes? Coisas do Brasil com Z. O que se sabe é que as emendas PIX sempre foram usadas para turbinar prefeituras comandadas por parentes de deputados e de senadores.
Antes mesmo do galo cantar, a verba chega aos cofres dos prefeitos. E não há necessidade alguma de apresentação prévia dos projetos onde o dinheiro será aplicado. Por isso, a repercussão negativa à decisão do ministro Flávio Dino era mais do que suspeita. Afinal, aos homens públicos não basta ser honesto. Eles têm de se apresentar como honestos. Sabemos todos que é um desafio mastodôntico para nossos políticos provarem que são puros quando o tema à mesa é o dinheiro alheio. Todavia, é uma questão de honra ao voto recebido. Uma das exigências do eleitor deveria ser cobrar seriedade e severidade do político que se encontra à frente dos negócios públicos. Do contrário, ele se torna dispensável, imprestável. Eis a razão pela qual eu não me preocupei com o grito dos deputados e senadores que temporariamente ficaram sem as emendas PIX.
Temi foi pelo silêncio dos que avaliam como normais eventuais ou sistemáticas orgias com recursos públicos. Não me cabe contestar a decisão anterior do STF, o silêncio do governo e as ameaças públicas do Parlamento. O que faço questão de registrar são as incoerências de parte a parte. Por exemplo, a baderna financeira é antiga. Por que somente agora ela incomodou o Poder Judiciário? De outro lado, se há correção na distribuição do dinheiro, qual o motivo da grita generalizada dos congressistas? Diante de minha imbecilidade como cidadão, o que posso dizer é que, país da ilegalidade, o Brasil ainda não se acostumou com a legalidade.
Por aqui, é proibido proibir. A praxe é virar crise aguda o fato de um representante de um dos poderes pensar em legalizar o que é ilegal. As críticas de bastidores alcançam o modo mal-estar e daí para se discutir a governabilidade é uma questão de tempo e de força. Parafraseando Montesquieu, quando vou a um país qualquer, não examino se nele há boas leis, mas se as que lá existem são bem cumpridas, pois as boas leis estão por toda parte. No pessoal e no profissional, a conclusão que chego sobre a reação dos deputados e senadores à decisão de Flávio Dino é uma cópia de uma frase esculpida a bico de pena por Eça de Queirós: “Quando a legalidade deriva duma aparência, duma convenção, duma formalidade, então nenhum escrúpulo deve haver em a espezinhar”. Foi que fizeram as excelências do Legislativo, antes de serem absolvidas pelas do Judiciário e do Executivo. Embora o tema ainda precise de regulamentação, o resultado é óbvio: mais uma vez o povo levou no PIX. A ilegalidade resolveu o problema de todos e ainda endeusou os infratores.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978