Como se fosse pouco levar o nome da escola de sua devoção para muito além da Passarela do Samba e lhe compor sambas memoráveis, Martinho da Vila Isabel já a homenageou em disco num distante 1984, quando gravou composições que louvam o bairro da zona norte do Rio, a agremiação homônima e seus bambas. No carnaval em que se torna octogenário, a festa é novamente para a Vila, cujos compositores, anônimos, ganham voz própria no CD Alô Vila Isabeeel, lançado em plena folia carioca – o show será nesta quinta-feira, no Teatro Bradesco.
Oito anos mais velho do que a Azul-e-branca, Martinho vira a idade pisando o chão da Marquês de Sapucaí, num desfile que trata do futuro do mundo. Nada mais apropriado. Ele fala com gosto do tempo de sambista jovem, em que deixou a já decadente Aprendizes da Boca do Mato, onde emplacara sambas, pela vizinha Vila, na qual estrearia como compositor em 1967 – e venceria depois as disputas de samba em 1968, 1969 e 1970 -, mas a retórica também demonstra um vigor digno de jovens apaixonados.
Gravado num clima de ação entre amigos, com as vozes da ala de autores da escola, o CD, projeto que era para os 70 anos da Vila, celebrados em 2016, traz 25 faixas, entre belezas desconhecidas e clássicos do cancioneiro, datados dos anos 1930 para cá. “Eu queria contar a história da Vila através dos sambas, e reuni os compositores que fizeram muitos sambas para a escola; alguns têm o sonho de ganhar uma disputa e nunca conseguiram nem cantá-los na quadra”, explica Martinho, o sorriso muito branco bem aberto.
“Existe muito samba-exaltação para a Vila, uma poesia muito rica, bem rebuscada. Foi um trabalhão escolher”, ele conta, lembrando que nunca fez samba para outra escola, o que não é incomum – sua filha Mart’nália este ano é uma das que assinam o hino da Unidos da Tijuca, tributo ao ator Miguel Falabella, por exemplo.
“Ter um samba na avenida é algo fantástico, é muito diferente de um show, são muito mais coisas envolvidas. Eu nunca quis fazer para outra, só para a Vila Isabel, e acabou. O amor não se explica de jeito nenhum. Eu lhe apresento uma pessoa e você gosta dela na hora; conhece outra, e nada. Minha relação com a Vila foi acontecendo aos poucos.”
Quatro de Abril (Nelson Afonso Nogueira Junior/Wilson Caetano) fala da fundação da escola, pelo lendário Seu China (Antonio Fernandes da Silveira), em 1946: “Foi num quatro de abril/ três dias depois da mentira/ que o poeta descobriu seu amor e sua lira/ Com alguém se reuniu/ Com ação de quem conspira/ Mas fundou com devoção a escola de samba da Vila”.
A inclusão de Samba do Samuel é um carinho em seu autor, Paulo Brazão, outro fundador. Demais alicerces da Azul-e-Branca são mencionados na comovente Sempre a Sonhar (Martinho/Ruy Quaresma) A letra de Samba do Samuel adiciona mais uma rima para Isabel, além das usuais “Noel”, “mel” e “céu”: “Pode falar de quem quiser, Samuel / Só não pode falar mal da Vila Isabel”.
Na Boca da Avenida Martinho fez há alguns anos com o parceiro Galhardo para uma disputa de “esquentas”, os sambas curtos que são puxados na Passarela antes de a escola entrar para desfilar. Será cantado este ano, substituindo o tradicional “Sou da Vila, não tem jeito/ Comigo eu quero respeito”.
Segunda Opção ele encomendou para o CD às três mulheres da ala de compositores, Mart’nália, Dona Ivanísia e Claudia Nel, é um “samba feminista”, ele brinca – a mulher desdenha do companheiro, dizendo, gaiatamente: “Eu amo a minha Vila / E você é minha segunda opção” e “Quando eu quero um aconchego, eu vou pro samba / Que é melhor pro coração”. De Mart’nália aparece também o verso da animada “Eu não quero saber / Eu só sei que sou Vila Isabel”.
A sequência das melodiosas e já emblemáticas Vila Isabel (Martinho/Moacyr Luz), Graça Divina (Martinho/Luiz Carlos da Vila), No Embalo da Vila e Renascer das Cinzas (ambas só dele) emociona qualquer um que nutra afeto por uma escola de samba. “O berço do samba é em Vila Isabel”, Martinho canta, sem querer abafar ninguém.
Martinho incluiu os sambas dos três campeonatos da Vila, Kizomba, Festa da Raça (Luiz Carlos da Vila/Jonas/Rodolpho), de 1988, Soy Loco por ti America (A Vila canta a latinidade) (Sergio 20/Carlinhos do Peixe/André Diniz/Carlinhos do Petisco), de 2006, e A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo (Martinho/Tunico da Vila/Arlindo Cruz/André Diniz/Leonel), de 2013.
Gravou também um pot-pourri do indefectível Noel Rosa (1910-1937), que não chegou a ver a escola do bairro amado nascer: Palpite Infeliz e Feitiço da Vila (com Vadico), que Martinho juntou à sua Alô Noel (com Claudio Jorge).
Os 80 anos não terão festão. Ou, como zomba, “feliz da vila”: “Vou fazer uma festa que ninguém nunca fez. Vai ser na Marquês de Sapucaí e a Globo vai registrar!”. Martinho ainda é enredo da Unidos do Peruche, que sai na sexta-feira. “Quero ganhar no Rio e em São Paulo. Sou modesto, né?”