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Alta na Bolsa tem recortes oficiais que ninguém vê

Uma vez mais os noticiários de Distópolis eram agitados por uma manchete completamente inesperada. Havia décadas a Bolsa de Valores tinha sido inaugurada para, segundo rigorosos critérios do Ministério da Estabilidade Econômica, proporcionar a negociação de ativos de empresas autorizadas. Apenas o Governo Central podia determinar o que era ou não ativo negociável. Diariamente o mercado de ações, normalmente morno, era aberto e fechado para negociar um valor estabelecido pelo próprio governo.

Naquele dia, porém, uma novidade: uma indústria, fundada por pessoas ligadas ao Governo Central, havia obtido autorização para captar dinheiro a fim de iniciar suas atividades. Muito dinheiro. Milhões. A expansão do empreendimento deveria ser rápida, e ele teria de ser colocado em funcionamento em poucos meses para cumprir seu crucial papel na sociedade tão bem organizada.

Para isso, todas as demais empresas foram proibidas de oferecer ações para os investidores. Apenas aquela – batizada de Empreendimentos Estratégicos S.A. – poderia, durante uma semana, negociar seus papéis.

A imprensa oficial recebeu expressas instruções no sentido de anunciar que, naqueles dias, toda família distopolitana que tivesse, somados os salários de seus integrantes, mais do que uma certa quantidade de dinheiro disponível por mês, deveria ir à agência de investimento credenciada e comprar ações da nova empresa. A comprovação se daria no imposto de renda, cuja declaração havia sido antecipada para assegurar o cumprimento do dever cívico.

Todos os outros empresários de Distópolis precisavam investir um valor mínimo, variável segundo o patrimônio de suas empresas, na Empreendimentos Estratégicos. E, ao cabo de um certo número de dias, deveriam prestar contas para um setor fiscalizatório especialmente criado para esta ocasião.

Aberto o pregão numa segunda-feira, logo atingiu-se um recorde de negociações. Jamais a bolsa de valores de Distópolis tinha visto tamanha pujança.

Programas de TV, jornais, revistas, a rede de computadores fiscalizada pelo Estado, todos os canais comemoravam o alcance e mesmo a superação das metas.

Todos falavam pelas ruas, escritórios, restaurantes e lojas, sobre o sucesso que a bolsa de valores alcançara durante a venda de ações daquela nova gigante do mercado. Como um povo unido era capaz de aquecer e fazer girar a roda da fortuna de um país, de cumprir metas, de bater recordes e satisfazer os seus governantes.

A Empreendimentos Estratégicos S.A. se tornou a maior e mais rica empresa de Distópolis. Moderna e tecnológica, praticamente não precisava de trabalhadores, pois era repleta de máquinas cuidadosamente programadas. Os robôs traziam a vantagem do funcionamento ininterrupto das linhas de produção, além de enorme economia com salários e direitos trabalhistas.

Campanhas de lançamento foram veiculadas. O logotipo divulgado pela diretoria era aterrador: um pássaro gigante tinha em seu bico um homem de expressão apavorada, cujas entranhas eram devoradas. Todos os orifícios de sua cabeça vertiam um jorro de sangue.

Comentários especiais eram feitos pela imprensa a respeito dessa marca: simbolizava força, arrojo e poder.

Com o sucesso da empresa, no seu patrimônio e em suas atividades, qualquer inimigo de Distópolis, tanto interno quanto externo, tremeria de medo e vergonha.

Próximo da entrada de uma escola, o avô, que acabara de deixar seu neto na aula, comentava com um transeunte seu conhecido como o sucesso obtido na bolsa de valores alegrava e trazia melhorias gerais à vida do povo, sempre muito bem tratado pelo dedicado governo e seus líderes. Era importante ter uma bolsa de valores em alta, negociando milhões e milhões!

Já estruturada, a Empreendimentos Estratégicos, ocupando vastas terras da região central do país, começava suas atividades de fabricação de produtos químicos venenosos, altamente letais, para serem usados em combate a eventuais sublevações do povo contra a ordem estabelecida.

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