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Alteração em gene desencadeia doença autoimune em bebês

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As doenças autoimunes, nas quais o sistema de defesa se volta contra o próprio organismo, podem surgir mais cedo do que se imaginava. Em casos raros, descobriu-se agora, podem se instalar antes mesmo do nascimento. Pesquisadores brasileiros identificaram em duas famílias – uma do interior de São Paulo e outra do interior do Paraná – casos de crianças que logo após o parto já apresentavam sinais de uma enfermidade autoimune incomum e grave: a síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X (IPEX).

Nessa síndrome, células de defesa da própria criança atacam múltiplos órgãos, que depois de semanas ou meses de agressão contínua deixam de funcionar adequadamente e geram os sinais clínicos reconhecidos pelos pediatras. Como os bebês de São Paulo e do Paraná manifestaram os sinais da IPEX nas primeiras horas de vida, os pesquisadores concluíram que o ataque imunológico só poderia ter começado muito antes, ainda na gestação.

O achado foi publicado em dezembro de 2014 na Clinical Immunology e surpreendeu os especialistas. “Não pensávamos que doenças autoimunes pudessem ocorrer durante a vida intrauterina”, conta a pediatra Magda Carneiro-Sampaio, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenadora da pesquisa.

Doenças imunológicas do feto iniciadas durante a gestação não são incomuns. A mais conhecida é a eritroblastose fetal, causada pela incompatibilidade entre o grupo sanguíneo da mãe e o do bebê. Nessa enfermidade, porém, o problema é provocado por anticorpos produzidos pelas células de defesa maternas, transferidos para a criança por meio da placenta e do cordão umbilical. A diferença com os casos descritos pelo grupo de Magda na Clinical Immunology é que, nestes, são as células do sistema imunológico do próprio feto que lesam o organismo. “Até onde se sabe, esses são os primeiros casos comprovados de doença autoimune iniciada na gravidez”, diz Magda.

Os casos descritos na Clinical Immunology são decorrentes de alterações em um gene que comprometem o amadurecimento de um grupo específico de células de defesa: os linfócitos T reguladores. Responsáveis por coordenar a ação de outras células de defesa, esses linfócitos passam por uma fase de maturação no timo, órgão situado no alto peito, na qual aprendem a identificar as células do próprio organismo e preservá-las do ataque a células de organismos invasores. Problemas nessa etapa de amadurecimento levam esses linfócitos a desencadear agressões contra o próprio corpo.

Desde 2008 o grupo de Magda investiga as doenças autoimunes que acometem bebês e crianças nos primeiros anos de vida. Os pesquisadores só não esperavam chegar aos fetos – embora alguns imunologistas já trabalhassem com a ideia de que os problemas autoimunes pudessem começar na fase fetal. “Há casos na literatura médica de bebês com imunodeficiências graves ao nascer”, conta Magda. “Uma doença dessa natureza não se instala de um dia para outro.”

O primeiro dos casos apresentados na Clinical Immunology chegou ao conhecimento de Magda anos atrás, relatado pelo pediatra Edson Suzuki, da Faculdade de Medicina de Marília. Mas a confirmação só veio com o estudo de outros dois fetos masculinos da mesma família, mortos em consequência de uma complicação no desenvolvimento, e de um caso em outra família, identificado pela endocrinologista Mariana Xavier da Silva, pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina que fez residência médica no Instituto da Criança da USP.

Nessa cidade do interior do Paraná, Mariana havia atendido um bebê do sexo masculino que nasceu prematuro e apresentou diabetes de difícil controle nas primeiras horas de vida. Exames laboratoriais mostraram que seu organismo já produzia anticorpos contra as células do pâncreas produtoras de insulina. Sinais de inflamação na pele, nos intestinos e em outros órgãos permitiram caracterizar o problema como IPEX.

Essa síndrome se manifesta em 93% das vezes no primeiro ano de vida, embora alguns casos sejam identificados logo após o nascimento. Sua origem são alterações pontuais no gene forkhead box P3 (FOXP3), que controla o amadurecimento dos linfócitos T reguladores.

Situado no cromossomo X, esse gene existe em cópia dupla nas mulheres e simples nos homens. Por essa razão, nas duas famílias as mães não haviam desenvolvido a síndrome, embora apresentassem uma das cópias alterada, herdada pelos filhos com Ipex. Ao investigar a história de doenças nessas famílias, os pesquisadores viram ainda que as mães e as avós (em uma das famílias também a bisavó) já haviam perdido outros bebês do sexo masculino durante a gestação.

Os pesquisadores buscaram na literatura médica outros relatos de aborto e nascimento de prematuros associados à Ipex, sinal de que a síndrome teria se manifestado ainda na gestação. De 2000 a 2014, encontraram outros 130 casos. “Em 45% desses casos, as manifestações autoimunes surgiram no primeiro mês de vida e, em 11 deles, no primeiro dia”, diz Magda. “Mas nenhum pesquisador propôs que a doença havia começado durante a vida intrauterina”, conta.

A constatação de que o problema pode começar na gravidez levou o grupo a propor um novo mecanismo para explicar o desenvolvimento da IPEX. Nas escolas médicas se ensina que doenças autoimunes como essa surgem quando os linfócitos T reguladores perdem a capacidade de distinguir as células do corpo das de microrganismos invasores. Segundo esse modelo, conhecido como quebra de tolerância, o problema só se instala depois que o sistema imune passa por uma fase de amadurecimento, antes considerado impossível na vida fetal. “Nesses casos não haveria quebra de tolerância, uma vez que a tolerância nem chegou a se estabelecer”, explica Magda.

Na opinião do imunologista português António Coutinho, do Instituto Gulbenkian de Ciência, colaborador do grupo, trata-se de uma mudança substancial no pensamento que predominou por muito tempo entre os especialistas. Ele acredita que esse trabalho deve servir para pediatras e neonatologistas ficarem atentos à possibilidade de recém-nascidos apresentarem doenças autoimunes. Quanto antes forem identificadas, melhores são os resultados do tratamento e maiores as chances de cura – a maioria das doenças autoimunes é tratada com imunossupressores e a IPEX, com transplante de células-tronco. “São procedimentos que podem salvar a criança”, diz Coutinho.

Obstetras podem usar as novas informações para encaminhar as pacientes para o aconselhamento genético quando há casos de abortos repetidos ou perdas de recém-nascidos do sexo masculino na família. “Se houver o risco de a gestação resultar em síndromes graves que atingem só os meninos, como a IPEX, a alternativa é fazer uma fertilização in vitro e escolher um embrião feminino”, conta Maria de Lourdes Brizot, especialista em medicina fetal da FMUSP. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina autoriza esse procedimento com a finalidade de evitar doenças ligadas ao sexo da criança. “Nesse caso”, diz Maria de Lourdes, “a escolha não é discriminatória, mas em favor da saúde e da vida do bebê.”

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