Em 63 antes de Cristo, um jovem romano chamado Públio Clódio Pulcro, disfarçado de mulher, invadiu um festival feminino promovido por Pompéia, mulher do ditador Júlio César, em homenagem a “Bona Dea”. Aparentemente, a intenção de Públio era seduzir a esposa do imperador. Ele foi pego e processado por sacrilégio, mas inocentado porque, no julgamento, César não apresentou nenhuma evidência contra o rapaz. Ao se divorciar de Pompéia, César afirmou aos súditos que sua esposa “não deveria estar nem sob suspeita”. A frase deu origem a um provérbio, cujo inteiro teor é curto e grosso: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Passados dois mil e oitenta quatro anos, a máxima permanece inalterada quando se pretende provar que uma tese, produto, sistema ou equipamento é seguro, auditável e acima de qualquer suspeita.
É o caso da urna eletrônica brasileira, criada em 1996 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e que, superados os primeiros 25 anos de sua sólida existência, jamais registrou alguma reclamação consistente e comprovada acerca de sua lisura. Foram seis presidentes eleitos sem máculas e com a certeza de que o voto dado foi o voto computado e divulgado. Entretanto, vivemos 2021 em um mundo em que a tecnologia nos vigia dia e noite. Por isso, ao contrário da afirmação de César, à Justiça Eleitoral “não basta parecer honesta, é preciso ser honesta”. É o que vem tentando fazer o presidente da Corte, ministro Luiz Roberto Barroso. Segundo ele, é “político” o discurso de quem diz haver armadilhas no sistema de votação brasileiro. De modo enfático, Barroso cobra provas dos que reiteram a existência de fraude. Coloquem as armas na mesa e digam aonde e quando ocorreram essas fraudes. Simples assim.
Da “construção” à consolidação, conheço bem de perto a urna eletrônica. Por isso, atesto diariamente sua segurança, consequentemente a lisura e transparência da votação no Brasil. Mas, considerando a evolução do debate sobre o tema, acho que isso não basta. Diante da força da insistência do presidente em desmoralizar o processo, está provada a insuficiência das argumentações públicas da cúpula, dos técnicos e servidores da Justiça Eleitoral. É preciso muito mais do que permanecerem sentados na temática da segurança. Há necessidade de um trabalho de formiguinha para convencer o eleitorado, principalmente os que vivem na periferia e nos rincões infestados de profissionais da mentira. Bolsonaro é incapaz de provar o que diz, mas dispõe de seguidores capazes de transformar o medo da derrota em texto constitucional.
Ainda que o país não inspire confiança à comunidade internacional e conviva com uma das maiores crises sanitárias da história, com quase 435 mil mortos e mais de 15 milhões de infectados pela Covid-19, não se deve menosprezar a facilidade de parlamentares descompromissados com a realidade em produzir aberrações e fatos destrutivos para a nação. Nenhuma alusão aos deputados Bia Kicis (PSL-DF) e Arthur Lira, presidente da Câmara, considerados a mãe e o pai da PEC do voto impresso. Não há recursos para equipar hospitais públicos e privados, tampouco para vacinas ou para manter universidades federais. Todavia, aprovada a auditagem da urna eletrônica, a Justiça Eleitoral não saberia como pedir mais recursos para reequipar as cercas de 300 mil máquinas já compradas da Positivo, a um custo estimado em R$ 1 bilhão. Na melhor das hipóteses, o TSE seria obrigado a comprar e acoplar às urnas 300 mil impressoras. Além de mais dinheiro, isso demanda tempo. E muito tempo.
Ministro Barroso, quem fala o que quer tem de ouvir o que não quer. Faça valer a força e o prestígio do TSE. Use seu “exército”, vá às ruas, à imprensa, mas não deixe o adversário falando sozinho. Produza novas campanhas contras as fraudes não comprovadas. Os vídeos explicativos são interessantes, mas pouco produtivos contra o populismo do lado de lá. Em 2002, primeira eleição geral com 100% de maquininhas, a urna eletrônica circulou gratuitamente pelo programa do Faustão e foi peça novela América, cuja autora, Glória Perez, debateu a segurança e a importância do equipamento genuinamente brasileiro no “boteco” de dona Jura, personagem da atriz Solange Couto. Negociando horários gratuitos, o tribunal também exauriu a votação paralela, trabalho de auditoria do funcionamento das urnas eletrônicas aberto a qualquer interessado. É fundamental que todos saibam a votação oficial e a paralela são simultâneas e por amostragem.
O objetivo é comprovar que o voto digitado pelo eleitor na urna eletrônica é exatamente o mesmo escrito em uma cédula de papel e depositada em um terminal de apuração independente. Tudo isso feito em um ambiente filmado e fiscalizado pelos partidos, Ministério Público e OAB. Ou seja, mais auditável do que esse voto só o que é depositado na “comadre”, coletor de urina largamente usado por mulheres internadas e com dificuldade de locomoção. Para quem não conhece, “comadre” é o feminino do popular penico. Obviamente a sociedade acompanha o imbróglio e gostaria de ser ouvida, no mínimo informada com frequência sobre o que vem sendo discutido e feito. Os defensores do voto impresso certamente têm pouco ou nenhum interesse no que ouvem ou leem. Além de tumultuar e repetir o fiasco da judicialização de Donald Trump após a derrota para Joe Biden, o que realmente importa é saber se João e José votaram em Jair Messias. Não esqueçamos que a versão de Bolsonaro e apoiadores é vendida diariamente.
O povo, a imprensa e os parlamentares precisam ser lembrados com frequência que o STF, por 8 a 2, já decidiu pelo sepultamento da chamada auditagem da urna. Também não devem esquecer que o ministro Gilmar Mendes, um dos votos favoráveis à proposta defendida agora por Bolsonaro, foi enfático nas críticas ao voto impresso, argumentando que a apuração do TSE é confiável e sujeita à verificação pelos partidos. Repetindo ideia sugerida à Corte em 2017, Mendes entendeu, porém, que a impressão aprovada à época pelo Congresso não contraria nenhum dispositivo da Constituição, mas deve ser implantada gradualmente e também por amostragem. Faço minha uma sintomática frase do ministro: “É possível que, na radicalidade dessas lendas urbanas (sobre possibilidade de fraudes), alguém descubra que o melhor é voltar ao voto manual. Relembrando a mulher de César, não seria de bom alvitre o tribunal já se preparar para evitar essa possibilidade?