Amarildo Almeida, no alto dos seus 80 anos, não era adepto de bebidas alcoólicas, apesar das iniciais do seu nome pudessem sugerir o contrário. Seja como for, de vez em quando, bebericava algo, mas apenas nas situações especiais. Uma tacinha de vinho tinto ou, então, aquela cervejinha estupidamente gelada durante os jogos importantes do seu Vasco.
O velho gostava mesmo era de caminhar acompanhado da sua inseparável Filomena, uma buldogue que havia ganho de sua filha há quase dois anos. Rechonchuda, a Filó, como era carinhosamente chamada, adorava os mimos que recebia daquelas mãos cada vez mais trêmulas. Quanto à esposa, a quase septuagenária Ismênia, esta parecia não gostar muito desse apego do marido por uma cachorra. Todavia, apesar de gostar de reclamar até de uma rara poeira sobre os móveis, preferia se manter muda nessa situação.
A vida daquele trio parecia destinada à mesmice, como se todos estivessem de acordo com os eventos. Amarildo levantava bem cedo para sair com a Filó, que saltitava de alegria no encalço do velho. Ismênia permanecia até mais tarde na cama e, ao se levantar, o esposo já havia preparado o café da manhã.
Enquanto degustava seu desjejum, a velha observava o marido com a Filó no colo. Aquilo a irritava tanto, que a sua boca se retorcia, como se estivesse tendo um derrame. Ela não entendia como é que alguém podia amar tanto um bicho, ainda mais uma cachorra de cara amassada. Entretanto, preferia se manter calada a ter um imbróglio com o cônjuge. Preferia guardar a saliva para brigas mais importantes.
E foi justamente naquele dia, um sábado, que algo inesperado aconteceu. Os velhos receberam a visita da Gertrudes, amiga de longa data que há pouco havia se tornado viúva. Os três estavam sentados à mesa da sala tomando um chazinho de ervas especiais. Quanto à Filó, lá estava ela toda preguiçosa estirada no sofá, com aquela cara cheia de rugas. O seu ronco fazia companhia àquelas três vozes tão gastas por décadas e mais décadas.
Depois de quase uma hora, eis que a cachorra abre os olhos, espreguiça-se e encara a face envelhecida do Amarildo. Ismênia logo manda o marido sair com a Filó. Ele obedece sem titubear. Então, assim que Amarildo fecha a porta, a Gertrudes faz um comentário sobre a Filomena.
– Que cachorra mais feia!
Não se sabe ao certo se tais palavras afetaram a Ismênia. Em todo caso, a partir desse dia, ela passou a ter um chamego com a Filó. Tanto é que até o Amarildo anda com ciúme, pois a cachorra passou a dividir as lambidas entre os dois velhos.