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Ambiente do golpe ganha contorno verde-oliva no Palácio do Planalto

Palácio do Planalto.

Em meados de 2014 eu estive em Bogotá, na Colômbia, onde ouvi falar pela primeira vez sobre o fact-checking. Conheci a jornalista Laura Zommer, diretora do site pioneiro argentino Chequeado, e fiquei impressionada pela simplicidade da proposta: checar se os políticos estavam falando a verdade. Laura repetia a quem quisesse ouvir que seu objetivo era “aumentar o custo da mentira” e ajudar as pessoas a escolher melhor seus representantes. Alguns meses depois lançávamos o Truco, projeto de fact-checking preparado para as eleições daquele ano.

Cobrir os desvios narrativos dos políticos era, na época, um exercício tão mundano que nos inspiramos no jogo de cartas de mesmo nome, adicionando um pouco de humor à cobertura. Naquela época, buscávamos entender questões como o mau desempenho da economia, cuja dimensão real só foi tornada pública depois da reeleição de Dilma Rousseff, ou se uma exoneração de um servidor havia sido demissão ou renúncia. Deslizes fiscais viraram o grande escândalo do governo – apelidados de ‘pedaladas’ – e a raiz do que seria o desastroso impeachment em 2016.

Em 2018, a coisa tomou outra proporção. O zumzumzum das “fake news” já era corrente desde a eleição de Donald Trump, e discutia-se avidamente as estratégias da campanha do republicano que haviam segmentado a população via anúncios do Facebook, espalhado desinformação em nichos, com uma ajudinha russa. Mas, por aqui, o peso da desinformação se fez sentir apenas na reta final da campanha. Como seguíamos com o Truco, percebemos que o que estava distorcendo o debate eleitoral não eram mais derrapadas de políticos ou maquiagens de dados. Havia uma industrialização da mentira feita para difamar o adversário.

Isso sempre houve, claro; mas o que impressionou foi a proliferação repentina, orquestrada e massiva de narrativas mentirosas através de redes sociais para reduzir o capital político dos opositores. Dez dias depois da eleição, publicamos uma reportagem destrinchando como o boato sobre o Kit Gay – que nunca chegou a ser distribuído a escolas – havia colado na figura de Fernando Haddad, através de uma campanha pelo Facebook e Whatsapp que mirava em especial os evangélicos.

Aquela foi, ainda, a eleição da mamadeira de piroca. Nessa segunda fase da desinformação, ficou claro que valia a pena usar uma campanha articulada de mentiras como arma para chegar ao poder.

Com a eleição de Bolsonaro, entramos aí em uma terceira fase, em que as campanhas de desinformação passaram a ser usadas como ferramenta para manutenção de poder. Nisso, Bolsonaro foi primoroso: é o primeiro presidente cuja estratégia de governo passa pela manipulação de discurso digital. Bolsonaro governa via redes sociais. E não se trata da mera propagação de feitos positivos do governo – algo que, se você acompanha os influenciadores bolsonaristas, sabe que é também orquestrado e pulverizado por dezenas de perfis semi-famosos – mas por trazer para as redes as intrigas palacianas, atacá-las e liquidá-las ali.

Basta ver como a eficiente máquina de destruição de capital político aniquilou Sérgio Moro, juiz que já foi um dos principais esteios do governo por ter entregue a Bolsonaro a popularidade que tinha obtido com a enviesada e antipetista Lava-Jato. O mesmo ocorreu com Luiz Henrique Mandetta, que chegou a ter tremendo apoio da população e até dos militares para conduzir a pandemia como mandava a OMS. Como detalhamos nessa reportagem, em semanas as redes bolsonaristas conseguiram arranhá-lo o suficiente para permitir sua demissão.

Este governo não tem um gabinete do ódio, ele é o gabinete do ódio.

Mas, na terceira fase, a estratégia era ainda pontual e com alvos específicos. Era empregada não apenas na destruição de reputações, mas também de desvio de foco de um evento ou notícia ruim para o governo – um bom exemplo foi o boato do ‘vírus chinês’ – sempre apoiada por robôs e contas inautênticas.

A partir da volta de Lula ao cenário eleitoral, chegamos, enfim, à quarta fase da desinformação. Uma campanha constante para descreditar as urnas eletrônicas, o TSE, o STF e, com isso, o esteio principal da nossa democracia. Há uma variedade de táticas adotadas, desde ataques pessoais a ministros do STF e TSE (“trolling”), desinformação localizada sobre as urnas em formato de memes (“meme”), falsos documentos e dossiês pretensamente científicos (“cloaked science” e “misinfographics”), campanhas de hashtags (“viral sloganeering”), uso de notícias antigas sem contexto (” recontextualized media”). Todas essas táticas estão descritas no utilíssimo Media Manipulation Casebook, projeto que reúne e classifica campanhas de manipulação de discursos online, elaborado pela professora Joan Donovan no Technology and Social Change project (TaSC) do Shorenstein Center de Harvard.

Há, ainda, notícias falsas espalhadas por sites hiperpartidários que aceitam fazer esse trabalho sujo repetindo discursos oficiais que invertem a lógica – por exemplo, ao atacar as urnas, na verdade se quer preservar a Democracia. (Seria uma modalidade política de “gaslighting”?)

Hoje, Bolsonaro se sente à vontade para engajar com tranquilidade a máquina pública na sua estratégia. A mentira é repassada através de meios oficiais, como a Secom. Ela é propagada em evento com diplomatas estrangeiros – organizado pelo Itamaraty, pago com dinheiro público – pelos comunicados do Ministério da Defesa, que questionam as urnas seguindo ordens do presidente, segundo o próprio, e até pelo Centro de Comunicação do Exército, que emite notas efetivamente defendendo os ataques ao nosso sistema eleitoral. Cada letra em cada um desses comunicados foi pago pelo seu dinheiro e pelo meu.

Engana-se quem acha que os constantes ataques não têm efeitos reais. Pesquisa Datafolha mostrou que, em meio à ofensiva, o percentual de eleitores que confiam nas urnas eletrônicas caiu 10% em apenas dois meses, chegando a 73% em maio.​

Eis o resultado observável dessa quarta etapa da desinformação. É o que a equipe da TASC chama de “muddy the waters”, ou “turvando as águas”, termo que lembra um provérbio chinês que diz que “águas turvas fazem com que seja fácil pegar um peixe”. Para a equipe do TASC, “água turva” é a criação, como resultado direto de uma campanha de manipulação midiática, de um ambiente informático confuso e desorientador, no qual é difícil para um cidadão comum separar o que é verdade do que é mentira. Isso acontece quando há uma proliferação de fontes desinformacionais competindo com fontes que relatam fatos, como jornais, sites independentes e a comunidade acadêmica.

Trata-se de criar uma grande quantidade de ruídos permanentes que impedem o simples raciocínio com clareza e turva o âmago daquilo que buscávamos lá atrás, quando lançamos o Truco: ajudar as pessoas a escolherem seus representantes com consciência.

É isso que faz a estratégia da “água turva”: plantar dúvida, poluir o debate, conquistar uma minoria que apoie a mentira. Isso já basta para criar um ambiente de golpe. Que, verdade seja dita, já está criado.

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