Milena, não lembro bem das coisas, minha memória virou uma lama.
Nós dois, por exemplo. Sinto muito, não faço ideia de como nos encontramos no Face. Você me disse que fez um comentário elogioso sobre minha foto de chapéu – que não era meu, e sim de uma namorada, nos bons e velhos tempos pré-Covid em que se podia ficar junto de verdade, com pegada – e que respondi. O quê, não faço ideia. Acredito em você, mas não lembro de nada. E deve ter tido alguma frase antes disso, você não ia simplesmente dizer “Oi, cara do chapéu. Te achei bonito, vamos xavecar?”.
Em contrapartida, lembro perfeitamente da continuidade. Você me perguntou sobre meus amores, respondi qualquer baboseira e devolvi a pergunta. E aí você desabou, começou a escrever que Deus era injusto, que tinha levado pro céu o amor de sua vida, e por aí foi, desembestada, uma cristã em guerra contra o Criador. Eu, ateu de carteirinha, fiquei até assustado ao ouvir/ler tanta blasfêmia – ouvir/ler, porque, juro, não me recordo se você teclou ou falou comigo pelo telefone do Messenger.
E aí escrevi pra você um texto lindo, Carta a Milena. Tantas vezes falamos dele, que lembro de quase todas as palavras (ou, se não lembro, fantasio, o que vem a dar no mesmo).
Foi esse texto que te seduziu, sei disso. Ou iniciou a sedução. Mas não lembro se o escrevi como um gesto de amizade, uma oferenda, um boi de reisado, ou se já estava decidido a conquistá-la. Acho que estava, nos primeiros meses da pandemia eu soltava os cachorros, vivia na ponta dos cascos, havia recém-descoberto os prazeres do sexo online. Nele ninguém brocha nem tem ejaculação precoce – o paraíso para homens de mais de 65 anos que nem eu. Era só o que se podia fazer, e eu fazia muuuito.
Não me recordo quando a coisa esquentou entre nós. Lembro-me de falar horas com você e, lentamente, ir minando suas defesas, trazendo à superfície a fêmea que você reprimia desde a morte do atleta. E certo dia você se tornou mais uma, talvez a mais querida, porém apenas mais uma de minhas namoradas virtuais.
Vivíamos num mundo de fantasia, em que minhas ciscagens, como você dizia, eram mencionadas em tom de brincadeira. Você fingia não saber das outras mulheres, eu fingia não perceber que você sabia. Mas então veio o banho de realidade, e a fez sofrer. Era a última coisa que eu queria.
Você, não era a primeira vez, aproximou-se de uma mulher de quem suspeitava fosse um de meus piteuzinhos. Talvez sua ideia fosse ficar amiga dela, falar do que sentia por mim e, desse modo, neutralizá-la. Mas a fera maldosa percebeu e investiu antes, soltou os cachorros, disse que era minha amante, que a gente já havia se encontrado (mentira), que eu havia prometido romper com você para ficar com ela (mentira), o escambau. Você, coelhinha indefesa, hipnotizada diante de uma loba faminta, limitava-se a repetir, “não quero atrapalhar o amor de vocês”. O que só alimentava a fúria maldosa da louca. Ela lhe enviou todas as postagens minhas e dela, todos os áudios, desde os de conversa literária até os de sexo virtual; cada um era um prego cravado em seu espírito. Rompi no mesmo dia com a louca maldosa e nunca mais falei com ela – mas isso não aliviou o seu sofrimento.
O pior, Milena, é que você não aguentou a barra – pesadíssima, admito – e terminou comigo. Pedi que você reconsiderasse, mas não cedeu. No fundo, dei razão pra você, foi muito doloroso ouvir todos aqueles áudios, ler todas aquelas postagens.
Nesse ponto, minha memória-lama foi um bálsamo. Ouvi e li tudo aquilo, mas bloqueei, como se tivesse deletado. Já para você, cada frase continuou a ressoar em sua mente, machucando, dilacerando. Sei disso.
Só que, minha querida, se a memória foi pro espaço, em contrapartida tenho muita imaginação – afinal, escrevo contos – e visualizei algumas realidades alternativas para nós dois (detesto grandes frases altissonantes, do tipo “para o nosso amor”).
Em uma delas, você engole o sapo e continua comigo, mas nunca mais consegue confiar em mim, e a gente vai se afastando pouco a pouco, até a ruptura. Em outra, você decide pagar na mesma moeda e parte para namoros online, mas isso é uma violência contra você mesma, que a machuca e a faz sentir-se a última das mulheres; em uma terceira, você vai de Salvador a João Pessoa e dá uma surra na vaca maldosa. A meu ver, essa é a alternativa mais sadia, mas infelizmente não aconteceu no mundo real. Nele, a fera venceu, a predadora conseguiu separar-nos, embora não tenha ficado com a presa – meu frágil corpinho. Nunca mais falei com ela.
E você nunca mais falou comigo. Me bloqueou no Facebook e no Whatsapp. Talvez ainda ouça meus áudios, para não esquecer da minha voz. Acho que não, você é dura, mas nesse país ainda é permitido sonhar. Eu nem isso, meu celular foi roubado e meu computador teve um peripaque, perdi todos os arquivos em que você aparecia. Resultado, nem lembro direito de sua voz, com seu delicioso sotaque baiano, e suas feições começam a se desfazer na lama de minha cabeça.
Então, Milena, escrevo este relato meio desesperançado, usando seu nome verdadeiro, torcendo para que algum amigo seu o leia, copie e repasse pra você. E que você fique comovida e decida apostar na gente. Tanta coisa que combinamos fazer, como nos encontrar para ver se poderia haver um relacionamento de verdade… Não chegou a acontecer, foi mais uma realidade alternativa que se desfez em fumaça. E se juntou à de meus cigarros, e desliza por meus dedos, enquanto escrevo.
Até outra vida, baianinha.