Curta nossa página


Quebras

Amores frustrados de Ernani e o resgate da velha pedra suja de sangue

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Ernani só queria dar amor, muito amor, e recebê-lo na mesma proporção.

Mas havia falhas nesse projeto.

A primeira quebra ocorreu quando Ernani tinha 8 anos. Seu grande amor, mna época, era sua cachorrinha, a Princesa. Os dois viviam em perfeita felicidade: brincavam o tempo todo pelo sítio, dormiam lado a lado, ele a cobria de carícias e beijos, ela o cobria de lambidas.

Certo dia, porém, Princesa trocou as mordidinhas fofas que sempre lhe dava por uma dentada mais forte, que tirou sangue. Ernani deu um grito, mais de susto e ultraje do que de dor; sem pensar, pegou uma pedra e afundou o crânio do bichinho.

Chorando muito, o garoto contou aos pais que estava correndo, com a pedra na mão, quando tropeçou e, na queda, atingiu sem querer o animal, matando-o na hora. Os adultos fingiram acreditar nessa história; o que os preocupava era o sofrimento (genuíno) de Ernani. A carcaça de Princesa foi enterrada ao pé de uma grande árvore do sítio, e ele nunca mais teve um bicho de estimação.

A segunda quebra de amor veio quando Ernani já estava com 17 anos. Ele cursava o Ensino Médio, na principal cidade da região, e morava com os tios. E mais, estava perdidamente apaixonado por Leila, de 16 anos, sua primeira namorada.

Os dois tinham expectativas diferentes quanto à relação. O rapaz sabia-se atingido por um disparo de Cupido, a quem imaginava como um anjinho rechonchudo do céu cristão, exceto por estar armado de arco e flecha. Com isso, não levava em conta que Eros – o Cupido dos romanos – era uma divindade poderosa, o filho de Afrodite (Vênus) e Ares (Marte).

Enamorado de sua princesa – era assim que chamava Leila, em uma referência inconsciente a seu primeiro amor, que apagara da memória –, ele a tratava com o respeito devido à futura mãe de seus filhos. Ao fazê-lo, esquecia a dimensão carnal do amor, associada à deusa da sedução, mãe de Eros, e sua violência, herança de seu pai, o deus da guerra.

Já a princesa sabia ser uma adolescente saudável, com os hormônios em ebulição. Queria fazer coisinhas, beijar muito de língua, tocar e ser tocada, necessidades que escandalizariam o rapaz. Assim, depois que Ernani se despedia com um beijo casto na testa, seguido pelas palavras de sempre, “Boa noite, minha princesa, amo você, sabia?”, a moça, sozinha em seu quarto, tocava-se até desfalecer.

Diante desse, foi uma questão de tempo até Leila arranjar um bad boy que se esforçasse para apagar o seu fogo. Pouco depois, ela terminou com Ernani, dizendo-lhe:

– Vamos dar um tempo, tá? Gosto de você gatinho, mas tenho 16 anos, estou na idade de soltar os cachorros, chutar o pau da barraca, tacar fogo no parquinho, coisas assim. Melhor agora que depois de casada. E você, desculpe, parece que não gosta muito da fruta, né não?

Arrasado, Ernani nem respondeu. Arrastou-se até a casa do tio, foi pro quarto sem falar com ninguém. A princesa o traíra, com certeza havia outro carinha, seus amigos já haviam insinuado isso, entre risinhos zombeteiros.

Dias depois, todo vestido de negro, com um lenço escuro que lhe cobria o nariz e a boca, Ernani atacou a princesa por trás, quebrando-lhe a cabeça com uma pedra. Ninguém testemunhou a agressão.

Durante a lenta recuperação de Leila, ele se comportou como o namorado perfeito, ficando o tempo todo a seu lado. Tão logo recuperou um mínimo de forças, porém, ela o expulsou, chegando a gritar quando ele a visitava. Afinal, os pais da moça pediram para ele se afastar.

– Ernani, você é um perfeito cavalheiro – disse a mãe, meio sem jeito –, mas minha filha não está bem, talvez nunca mais seja a mesma. E, por algum motivo, não tolera sua presença. Então, por favor, considere terminado o namoro, não a procure mais.

Ernani protestou, disse que amava Leila loucamente, que ela superaria aquela fase difícil, mas não teve outra saída senão obedecer.

“Fui traído por meu primeiro grande amor”, disse a si mesmo. Logo eu, que tenho tanto amor pra dar e só quero ser amado!” Mas seguiu em frente, que jeito?

A terceira quebra de amor ainda não aconteceu. Mas, aparentemente, é uma questão de tempo. Aos 23 anos, Ernani casou com uma colega de trabalho, dois anos mais velha. Ela descartou, gentilmente mas com firmeza, seus protestos de amor eterno, de encontro de almas gêmeas, e o conduziu pelos prazeres molhados da paixão segundo Afrodite, à dimensão carnal desse impulso. Foram cinco meses de um relacionamento perfeito, sem nuvens.

Nas últimas semanas, porém, Ernani vem percebendo que uma tempestade se aproxima. A princesa – é assim que a chama, velhos hábitos custam a morrer – lhe fala em um tom mais impaciente, por vezes ríspido, zomba de suas juras apaixonadas, procura cada vez mais as amigas e não raro se perde em devaneios. O sexo continua gostoso, mas ele sente que ela quer mais, precisa de mais.

“Um outro homem vai surgir em breve, se é que já não apareceu”, pensou, amargurado. “Talvez um antigo amante, ou, pior, alguém novo, que lhe desperte a curiosidade”.

Seu rosto crispou-se em uma mescla de rancor e autopiedade.

“Mais uma vez, meu coração será espezinhado”, prosseguiu. “O destino não me reservou a felicidade suprema de amar e ser amado, não até o fim de meus dias. Só que, dessa vez, estou pronto”.

E, pegando uma chave, abriu um baú onde guardava roupas negras, um lenço escuro e uma grande pedra com manchas avermelhadas, desbotadas pelo tempo.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.