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Il cantante

André, Hawking do xadrez, sabe pregar uma peça

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José Seabra - Foto Acervo Pessoal

O Monte Branco de Courmayeur, na fronteira da Itália com a França, é o ponto mais alto da União Europeia. Fica a 4 mil 748 metros acima do nível do mar. André Montanha (originalmente Montagna, dos seus antepassados, que tiveram o sobrenome aportuguesado nesta terra tupiniquim), tem o raciocínio mais rápido do que os ventos que sopram velozes sobre os Alpes. Se, de um lado, enfrenta dificuldades para movimentar os membros inferiores e superiores, de outro, demonstra ter neurônios acima da média de qualquer um de nós, seus simples irmãos mortais.

André não é um Stephen Hawking, é verdade. Mas os dois têm algo em comum que vai além da cadeira de rodas – a inteligência. Foi com esse rapaz de 44 anos, nascido no Gama e hoje residente em Taguatinga (duas das maiores cidades do quadradinho do Distrito Federal), que dividi a tarde e o início da noite do sábado, 12. Nos separando, um tabuleiro de xadrez, com as peças de terracota, a quem presenteei na certeza de que voltarei à sua casa mais vezes.

Ao contrário de Stephen, acometido ao longo da vida por esclerose lateral amiotrófica, André já veio ao mundo com dificuldades motoras. Mas ele não está nem aí pra isso. Ri, brinca, desce da cadeira, engatinha, volta, come um pão de queijo fresquinho, uma fatia de bolo de mandioca (que prefiro dizer de macaxeira) e sorve uma xícara de café esfumegante.

Decidimos jogar. No início da partida, para não derrubar peças praticamente embaralhadas, pede-me para abrir, ele com as brancas, peão quatro rei. Um lance tradicional de iniciantes, raramente empregado por enxadristas, digamos assim, mais experientes. Sinalizei que atacaria com minhas pretas, arrastando o peão para a casa três do cavalo do rei. Qual o quê. À medida em que bispos e peões se espalhavam estrategicamente sobre o tabuleiro, André foi devorando minhas peças. Levou-me a rainha e deixou-me em xeque. Levantei-me, fui fumar na calçada e disse lá para meus botões: “De principiante, esse rapaz não tem nada”.

De volta ao jogo, quebrei a cabeça na tentativa de não tomar um mate. André, já com o tabuleiro menos congestionado, movimentava as peças com a velocidade de um enxadrista que disputa uma partida contra o adversário e o relógio. Mas, por fim, consegui, em lances de magia, arrancar um empate. Rimos e nos parabenizamos, sob os olhares lacrimosos dos pais dele. Uma nova rodada de café, bolo, pão de queijo. E outra ida à calçada. Desta vez, acompanhado por meu amigo em sua cadeira de rodas.

– Você é muito bom no xadrez, disse-me ele, com voz pastosa. Repliquei que não esperava um adversário tão difícil. E André sorriu como uma criança que ganha seu primeiro pirulito.

Parênteses. Nos conhecemos há pouco menos de um mês. Foi na noite de 20 de julho, no Grupo de Assistência Social e Espiritual São Francisco de Assis, em Águas Claras. Vem a ser uma instituição espiritualista frequentada por católicos, evangélicos, judeus, muçulmanos e das mais diferentes religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé. Lá há um dia dedicado ao expurgo. Nessas oportunidades, vive-se em meio a frequentadores de entidades do popularmente dito terreiro de macumba. Na primeira ida, me foi confiada a missão de, sempre que possível, ir jogar xadrez com um cadeirante. Fim do adendo. Volta-se à narrativa original.

Na segunda partida, André veio com sede de vitória. Esbarrava e derrubava uma ou outra peça, a que me apressava a repor na devida casa. Ele se desculpava, agradecia; eu sugeria que segurasse o bode bravio dos Alpes. “Vou ganhar de você”, dizia. Em um lance rápido, levou-me o bispo do rei para a bolsa da sua rainha. Observei, porém, que deixara o flanco aberto.

– Péra aí, André. Vou fumar. Mas cuidado com essa rainha.

Estava na calçada quando o vi engatinhando para dentro de casa. Voltou com uma pequena caixa de xadrez. Abriu. Peças multicoloridas, produzidas manualmente sabe-se lá se por descendentes de incas e astecas, ou por monges tibetanos. Algo de raríssima preciosidade.

– É seu, José. Estou retribuindo o presente.

Agradeci, recusei. Meu presente, respondi, é estar aqui jogando com você.

Voltamos à mesa. Eu havia alertado para os riscos de ele ter avançado com a rainha. Ganhei a partida com xeque-mate de bispo.

– Realmente você é bom no xadrez, José. Vai voltar aqui?

– Vou, André. Dia 26.

– Venha mais cedo, almoce com a gente. E papai canta e toca violão enquanto a gente joga.

Está aí mais uma prova da inteligência desse meu novo amigo. O pai, o velho Montagna que tem nas veias o sangue dos Alpes e cabelos prateados como os meus, abre um sorriso e fala do seu repertório. De Nelson Gonçalves a Noel Rosa. Melhor que isso, nem Vivaldi. Dia 26 volto lá. Se perder, já tenho uma desculpa na ponta da língua: Il cantante distraiu-me.

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