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Aníbal, velho cavalheiro, enfrenta escada e fanfarrão

Ao contrário do pai, música nunca fora uma parte muito presente na vida de Anibal. Claro, ele tivera de decorar o Hino Nacional nos tempos de escola. Também se lembrava de algumas marchinhas, mesmo nunca tendo sido frequentador habitual de bailes de carnaval.

Nem mesmo as interpretações teatrais de Cauby Peixoto conseguiu despertá-lo para essa arte. Gostava de Altemar Dutra, mas nada além de certa admiração por alguém que soube fazer um bom trabalho usando a voz.

Sim, ele apreciava o timbre agradável da voz de Altemar. E nada mais. Música, para ele, era apenas um apêndice da vida que muitas pessoas cismavam em dar uma importância muito além do razoável.

No entanto, nem mesmo esse quase descaso foi impedimento para notar as canções que vinham de algum aparelho de som do apartamento em frente. O cantor era conhecido, aliás, mais do que conhecido, mesmo para alguém tão à margem da música como Anibal.

Sempre no mesmo horário, aquele barítono tomava conta do ambiente. E uma voz feminina fazia um belo dueto com o cantor de voz rouca. Anibal não conhecia propriamente a dona de tão bela voz, mas já havia cruzado com ela umas duas ou três vezes no corredor ou no elevador. Devia ter no máximo 28, 30 anos, se bem que o velho nunca houvera prestado muita atenção, mesmo porque a moça havia se mudado há pouco tempo para o prédio.

Sabia apenas que era jovem e morava com uma senhora, possivelmente a mãe ou, então, uma tia, uma amiga ou qualquer coisa que o valha. Sabia que era a jovem do dueto, pois certa vez encontrara a mulher que dividia o apartamento com a tal no exato momento em que esta soltava a voz na feliz tentativa de acompanhar o famoso cantor.

Na verdade, não estava interessado na garota, mesmo porque há muito Anibal deixara de se interessar por romances, ainda mais com uma quase criança, tão jovem que ainda era possível sentir o cheiro do leite materno em suas ventas. Exagero, alguém poderia dizer. Talvez, mas não se levarmos em consideração o disparate das idades dos dois. Um romance com aquela mulher tão jovem seria simplesmente ridículo! E Anibal poderia ser tudo na vida, mas jamais ridículo. Pelo menos, não a tal ponto.

Seja como for, certa noite os caminhos do velho e da jovem rebenta se cruzaram novamente. Depois de uma partida de xadrez com Nilson, onde a sorte não havia estada ao lado de Anibal, aconteceu aquele que poderia ser chamado de fato que mudou definitivamente o destino de um homem.

— Boa noite – Anibal cumprimentou duas senhoras na entrada do edifício onde morava. Depois seguiu para o elevador, mas desistiu.

Naquele dia, quis experimentar as escadas, talvez como uma homenagem ao falecido pai, que costumava tomar esse rumo de vez em quando. Os degraus foram vencidos um a um.

O homem pensou em desistir e continuar sua trajetória para o lar de elevador. Pensou novamente no pai, insistiu nos degraus, apesar das dores que o castigavam. E lá foi o ancião arrastando a carcaça maltratada por décadas de descaso.

— Afinal, o que você quer? Pensa que eu não vi você paquerando aquela piranha da Aline? – a vizinha de Anibal está furiosa com o namorado.

— Você tá louca, Karina! Eu apenas quis ser gentil com ela – o namorado tentou uma desculpa, mas parece que não estava surtindo o efeito desejado.

— Gentil? Você é um canalha! Gentil? Só me faltava essa! Não sei onde você arruma tanto óleo de peroba pra passar nessa sua cara-de-pau, Jorge.

— O que é isso, benzinho?

— Benzinho? Ah, garoto, vê se cresce! E aproveita e também desaparece da minha vida!

Nesse exato momento, Jorge pegou o braço de Karina. Ele o apertou com força, o que fez a moça soltar um “ai”. Anibal apareceu e acabou se intrometendo. Ele sabe que não é boa ideia se meter em briga de casal, mas a sua índole não lhe permitiu ver uma mulher ser subjugada pela força bruta e, por isso, como um Don Quixote, entrou em ação.

— Ei, solte a moça!

— Ah, vai ver se estou lá na esquina, vovô! – Jorge olhou Anibal apenas de relance e apertou ainda mais forte o braço de Karina, que lhe implorou para soltá-la.

— Ai! Você está me machucando, Jorge! É melhor você me largar! – Karina ameaçou, mas sem muita convicção do que disse.

Anibal não resistiu e avançou em direção ao agressor. O seu oponente, além de muito mais jovem, é pelo menos 10 centímetros mais alto e bem mais forte. Jorge, ainda segurando o braço de Karina, empurrou o velho, que foi ao chão, bateu a cabeça na parede e caiu desacordado. Karina finalmente resolveu cumprir a tal ameaça e, então, com a perna direita, desferiu um chute na parte interna da perna direita de Jorge, desestabilizando-o. Em seguida, a jovem acertou uma joelhada nas partes baixas do namorado; depois lhe aplicou uma rasteira e, por fim, já com o oponente caído, desferiu-lhe um pisão no estômago, ao mesmo tempo que soltou um kiai, grito da guerreira.

Jorge ficou se contorcendo em dores, enquanto Karina foi em socorro do Anibal. Ela até pensou em entrar, mas antes mesmo de fechar a porta de casa, voltou a olhar o Don Quixote nocauteado e veio ajudá-lo. Anibal pareceu já estar retornando do breve sono.

— O senhor está bem?

— … – nenhuma palavra, Anibal apenas vislumbrou a linda face oriental diante do seu rosto carcomido pelo tempo.

— Venha, deixe-me ajudá-lo a se levantar. O senhor mora aqui em frente, não é? – Karina perguntou o óbvio, mesmo porque ela já havia encontrado aquele mesmo velho algumas vezes.

A moça nem percebeu que, nesse ínterim, Jorge se levantou, observou a cena e, cambaleante, tirou o time de campo acompanhado do orgulho mais que ferido. Como um leão açoitado pela leoa, foi lamber suas marcas da batalha perdida bem longe dali. Quanto ao idoso, constatou que fora salvo pela mocinha da história.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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