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Eurípedes, o agoniado

Aniversário das gêmeas só com conta na ponta do lápis

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Atormentado desde os longínquos tempos de berço, Eurípedes era do tipo que se afligia ao menor descompasso da vida. Um fio que se soltasse da camisa, o tubo da pasta de dente destampado, um copo sujo sobre a pia. Leite derramado, então, era o caos, como se a fome do mundo pudesse ser extinta por aqueles mililitros que se espalhavam pela cerâmica da cozinha.

No dia do casamento, o homem acreditou piamente que Arlete, a noiva, o havia abandonado, pois os tradicionais trinta minutos se esticaram a quase uma hora. Pois é! Uma hora! Aquilo era sinal evidente de que a moça desistira de passar os próximos anos e tantos mais que viessem ao lado de Eurípedes. Que nada! A mulher apareceu linda e, sorridente, disse o tradicional sim e, em seguida, ainda tascou aquele beijo apaixonado nos lábios trêmulos do noivo. A lua de mel prometia!

Os primeiros meses foram só alegria, apesar das preocupações do marido. Arlete, ainda muito apaixonada, talvez não tenha percebido ou, pode ser, teria relevado tais aborrecimentos. Afinal, Eurípedes até que se mostrou bom marido, sabia se fazer útil nos afazeres domésticos e, à noite, se fazia competente.

O casal, assim que estava prestes a comemorar bodas de algodão, se deparou com algo fora dos planos mais breves. Arlete sentiu os primeiros enjoos. Regras atrasadas, não teve dúvida. Não ficou triste, apesar da possibilidade de mudanças drásticas que, certamente, chegariam lá pelo mês de setembro ou, mais tardar, início de outubro.

Não tardou, os pombinhos souberam que a surpresa chegaria em dobro. Outro susto, é verdade, mas nada para se apavorar, mesmo diante da preocupação de Eurípedes de ver a família passar a ter quatro membros em breve.

O parto chegou em uma manhã chuvosa de uma conhecida cidade do Nordeste, mas cujo nome, a pedido do casal, será mantido sob reserva. Laura e Lúcia, cara de uma, focinho da outra, eram cópias da mãe, que precisava se desdobrar em duas para atender tantos desejos por um peito. Sorte das duas, pois o leite escorria pelo ladrão.

As meninas cresceram e, parece, esse tempo de noites mal dormidas se transformaram em muita agitação pelo jardim da modesta casa, comprada à custa de muito suor de Arlete e Eurípedes. Ainda faltava aquela infinidade de prestações, mas nada que tirasse a mulher do sério. Quanto ao Eurípedes, fazia e refazia um mundaréu de contas e, não satisfeito, as repetia de trás para frente, de frente para trás. Na mente do homem, sempre havia um se.

Arlete, mais prática, colocava mais água no feijão se necessário, trocava a margarina pela manteiga, fazia um furo a mais no cinto para as calças não desabarem. Tudo se dá um jeito, ela pensava. Seja como for, no final do mês, por mais apertado que fosse, sempre havia de entrar o próximo pagamento, que empurraria a dívida para o mês seguinte. E assim ia vivendo.

E, apesar das dificuldades, até que aquela família levava uma vida razoável. Mas paciência tem limite e, o que se conta à boca pequena é que, certo dia, Arlete viu a sua se esvair. Eurípedes, desesperado como ele só, chegou bem próximo ao ouvido da amada. Disse que a situação era calamitosa, pois o aniversário das filhas seria dali a três meses, mas o dinheiro andava curto.

— Calma, Eurípedes.

— Como, Arlete?

— Cada dia com sua agonia.

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