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Uma crônica cadente

‘Antes adorado com amor, hoje ouço fogos zumbindo em meus ouvidos’

Publicado

Autor/Imagem:
Thi Tavares - Foto Produção Francisco Filipino

Sinto o calor aquecendo meu corpo lentamente enquanto uma luz amarela me envolve gradativamente. Aos poucos o fogo toma conta de mim, e minha consciência se refaz, como sempre acontece quando nós, os celestiais, entramos em órbita. O atrito entre nosso corpo e a atmosfera gera calor, vida e luz.

Junto da consciência se instala, aos poucos, a percepção. Onde estou? Orbito algo novo ou um velho conhecido? Pela composição de minhas chamas, eu diria que conheço esse lugar. Ah, sim. Me lembro bem dele. Estive aqui algumas vezes. Já relatei aos ancestrais, em uma das minhas órbitas, sobre essas pequenas formas de vida que aqui estão.

Lembrei de uma recente passagem em que vi vários deles caminhando e olhando para mim, me utilizando como guia. Daqui de cima eu os observei indo para alguns pontos específicos e carregando em suas mãos pequenas especiarias.

Um dia, o ar me contou que três ficaram famosos por me seguirem, mas que ele duvida que a história seja assim mesmo. O ar não enxerga, mas ouve como ninguém. E narra, aos quatro ventos, tudo o que deve ser espalhado.

Minha passagem foi celebrada tantas e tantas vezes por aqui. “Filho do sol!” e outros elogios me gritavam em meio a festejos e cortejos. Diversos povos montavam lindas estruturas em homenagem a alguma passagem, de que esporadicamente eu fazia parte. Eu via em seus olhos o brilho de felicidade em me ver. “Lá está, olhe! Olha, olha! Levará gerações para que seja possível ter essa visão de novo”.

Em passagens antigas me recordo de ver grandes árvores decoradas para homenagear alguém que acreditavam ser eu. Árvores robustas, altas, de cascas grossas e com fissuras provocadas pelo envelhecimento e pela força. A neve fria caía enquanto eu passava, e o povo comemorava aos berros a chegada do inverno.

Outros decoravam suas roupas com flores e marcavam seus animais. Nessa época as cores sempre estiveram presentes, como também a felicidade e a harmonia entre os povos. Certa vez, tiros e bombas cessaram, e em seus lugares houve abraços, presentes e jogos. Depois, como de costume, os mesmos que cantaram juntos, morreram um pelo disparo do outro.

Havia distintas celebrações em torno deste grande corpo azulado.  A cada volta que dava pela órbita, via as mais belas saudações ao infinito. Gritos abafados pela atmosfera, gritos que não podiam ser ouvidos fora do seu pequeno mundinho, mas que eu carregava até os ancestrais.

A todos era comum o sorriso esperançoso de uma nova chegada, o nascimento de um novo tempo e o desejo de que o vento, cego e sem preferências, trouxesse bons sopros de vida. Os abraços eram sinceros, as trocas amigáveis e sentimentais. Dava-se aquilo que tinha mais valor sentimental e se recebia o mesmo dos outros. Assim os povos ficavam trancados em suas casas por causa da neve, os criadores de gado que marcavam seus animais nascidos na véspera e os adoradores do Sol em todos seus idiomas, formas e homenagens.

Vejo um novo hábito em um velho mundo, um hábito vazio e criado, certamente, por um deles. Esses pequenos presunçosos seres que se espalham freneticamente por essa superfície. Os gritos viraram bombas de luzes, as cores são artificiais e intocáveis e, muitas vezes, mortais. Eu passo sem conseguir vê-los de tanta luz, luz que não aquece e não é vida como a que sinto em volta do meu corpo. Assim não é possível renascer. Se eu desço para avisá-los, não tenho como dizer. E se mesmo me vendo passar há tanto tempo nada aprenderam, não é agora que vão aprender.

Hoje jogam as cores aos céus com barulhos estrondosos, no lugar das flores e de suas preces. O infinito não conseguia ouvi-los e agora tem medo de suas intenções. A época luminosa que trazia calor para uns, frio para os outros e união para todos, agora traz um grande silêncio de admiração por sua fútil generalização. A velocidade do meu corpo aumenta e o fogo diminui. Logo não estarei mais em órbita, e eles estarão sem suas vagas celebrações. Eu dormirei até renascer em chamas em uma nova órbita e eles… bom, eles não sei.

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Thi Tavares é escritor, autor de “Almi, onde nascem as histórias”, Ed. Clube de Autores. https://clubedeautores.com.br/livro/almi
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