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A emersão do submundo

Antes do Verbo era o verme; houve o Apocalipse e a Terra ganhou em perfeição

Publicado

Autor/Imagem:
Hannah Carpeso - Foto Francisco Filipino

Chovia. A noite escura, silenciosa, permitia ouvir o ruído das águas correndo junto ao meio fio. Águas poluídas, coletadas das ruas, corriam ladeira abaixo arrastando o lixo derramado ao céu aberto com os restos fecais de gente com ou sem teto – igualadas no desprezo ao entregar suas imundícies ao mundo e, assim, desaguar nas bocas de lobo que engoliam com avidez toda a porcaria despejada.

Entre as poças e sombras uma figura apoucada, esquálida, possuída se arrasta deixando-se levar pela enxurrada.

Um mergulho no bueiro, e foi lançado na tubulação escura, no fétido ambiente onde encontrou sua origem de verme do mal.

Contorcido ao ser empurrado contra o limo das paredes, inalando com deleite o cheiro da podridão da sociedade, reconheceu-se parte desse mundo de doenças, de horror, violência injetada na pele de quem nasceu para liderar um processo de destruição.

Extasiava-se na exploração de seus vis sentimentos, avaliando como expandir esse mundo para fora e angariar apoio para uma nova civilização.

Vermes são responsáveis pela decomposição.

Como arquitetar a degeneração, a contaminação, a inversão dos valores e o apostilamento de novas condutas perversas e sanguinárias?

Estava ciente de ser ele – o grande líder!

Mergulhado na mistura do esgoto, convivendo com ratazanas, baratas eKafka. Sentiu o enorme prazer de estar ali: sujo, enlameado, endiabrado na condição de ser único a desbravar o submundo.

Ser das trevas. Urrava! Poderoso, permaneceu em êxtase mesmo sem gozo.

Agarrou-se com todas as forças aos canos enferrujados de onde tirava mais energia e, pensava manter-se estrategista.

Aos poucos, empurrado pela força do volume d’água, cuja volúpia crescia cada vez mais em suas ondas empanturradas do próprio lixo, viu rescindir o contrato de líder; submetido e quebrado a sua resistência.

Afinal, a podridão não foi mais forte.

Percorreu quilômetros adentro da enxurrada sendo levado a contragosto a desembocar num rio.

Jogado, expulso tal qual organismo se livra do bagaço, revoltou-se por perder o habitat adorado.

Inconformado, se viu perdido. Mergulhado em águas purificadas apesar de ainda malhadas, cercado de troncos retorcidos, abraçados pelos capins ceifados que “manguezavam” as margens.

Ainda tentou sobreviver.

Rastejou pelo pântano onde reencontrou seu parentesco verme, ainda no odor e no lamaçal que pretendia desenvolver.

Mas as águas são fieis ao seu curso; apesar de toda a garra, foi-se o verme arrolado pelo leito do rio.

Não sobreviveria em águas limpas.

Lutou ferozmente para regressar a casa, mas a força da correnteza centrada, o afogava empurrando-o sob o domínio do mais forte.

Sentiu-se fragilizado e isso o irritava. Aos poucos perdendo a confiança em sua resistência, tentava agarrar a cabeleira verde que o vigiava e, ria ao vê-lo impotente diante do destino ao mar.

E na medida em que percorria e se banhava nas águas cristalinas, via a sua figura esquálida submissa enfraquecer, desfazendo-se “lesmamente”, enquanto se mantinha no rumo do desaparecer.

E, o curso do rio, sobrevivido à tamanha podridão, se expandia dando vida aos peixes que se encarregavam de comer os miasmas do verme que outrora tivera tanto orgulho.

Assim, sendo dizimado, pensou morrer com ele, a maldade, a violência e a devassidão.

Ledo engano.

Os vermes sobreviveram entranhados nas vísceras dos aquáticos e se proliferaram em sua descendência.

Permaneceram vivos naqueles, que incapazes de detectá-los e que os levavam à mesa em jantares festivos ou não.

Células gosmentas, levadas pela água infiltrada nas paredes do solo conduziam os vermes às raízes dos vegetais que acompanhariam os decorados pratos da digestão.

Assim se multiplicavam sem mistérios ou dogmas, expandindo seu reinado entre o lixo despejado por outros iguais, em busca de espaços e dominação.

Ao chegar ao mar salgado, curtida a carne, seus restos se espraiaram por águas profundas e rasas. E ao tocar a areia e se agarrar- ali, encontrou a volta a casa.

E no cenário recomposto, segue o ciclo “verminático” a renascer fortalecido, em novas gerações.

E… Outras noites, tão escuras e silenciosas, no ruído sussurrante de novos “córregos” pelo asfalto – novamente, bueiros despidos de filtros: uma boca de lobo voraz aspira ao círculo dos horrores que os homens continuaram praticando; até emergir na superfície – as mesmas regras do submundo.

Porque a raiz do mal não desaparece. Simplesmente se reveste aprimorada, espalhada e não necessariamente será dos “vermes apequenados”.

Uma nova geração surge viciada, dependente possuída pela intoxicação absorvida.

O terror faz parte do cotidiano, o medo é ensinado no berço e, a violência é premiada a cada manifestação de domínio e poder.

As ruas são campos de guerra. O sol arde mais quente o que provoca o derretimento da carne, obrigando a refugiarem-se em locais úmidos e escuros que se tornaram o novo habitat.

O homem nas suas vísceras transformadas sente intensa dor nas entranhas, em razão de sua nova natureza demoníaca.

A cada ciclo sua aparência assume características mais monstruosas. A pele descamada gosmenta desmancha no contato de metais, seu hálito azedo emana cheiro de enxofre, sua íris opaca impede de enxergar com nitidez, sua audição – extremamente aguçada a ponto de enlouquecer ao menor barulho e por fim, a sua capacidade de fala é reduzida ao instinto mais primitivo.

Um novo estágio de civilização autofágica reaparece até que o último ser seja derrotado.

Este caminho sem volta é a vitória da emersão do submundo.

O outrora lixo agora é ordem.

Mas como tudo tem seu contraponto, atentos às ações malignas, esperando o momento certo de agir sobre o livre arbítrio dado, a legião de Arcanjos na tríade: Gabriel, Rafael e Miguel atentos aos demônios, num ato de clemência abduziram seres humanos e animais por todos os continentes, e tal como a arca de Noé, aguardaram o momento de devolvê-los ao planeta liberto das possessões e do próprio exorcismo.

Eis que nesse conturbado cenário, uma voz rasga o tempo e brada: , “Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incursio infernalis adversarii, omnis legio, omnis congregatio et secta diabolica, in nomine et virtute Domini Nostri Jesu Christi”.

E entre trovões e raios de luz bíblicos, acontece o Apocalipse.

Silêncio!

Enquanto o planeta sofre por uma purificação das águas, do solo, dos ventos, das entranhas, contorcendo-se em línguas de fogo, a queimar todo o mal e vestígios, revirado pelo avesso.

Silêncio!

Aguardam as divindades o momento.

Em tempo, a Terra ressuscita liberta, recomposta na sua natureza limpa e então, são reposicionados – os puros.

Assim, ficou para trás outro momento da evolução do homem- da expiação.

Pisam agora numa Terra que deixou o sistema Solar e se projetou na Galáxia para mais próxima da perfeição. E, totalmente absolvida da possessão.

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