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Antropófagos virtuais deixam morrer os poemas da poeta que morreu

Giovanna, Gio, era poeta, não poetisa. Poeta, e das boas.

Tinha alguns livros publicados, que vendiam pouco. Talvez por isso, decidiu postar seus poemas nas redes sociais, em sua página, Poemas da Gio. Tinha um séquito fiel de umas 60 pessoas, que achavam lindo tudo quanto escrevia. Não eram os críticos mais argutos, longe disso. Aliterações inesquecíveis e imagens audaciosas costumavam passar batido; mas nunca faltavam comentários bobinhos de “Lindo” ou “gratidão”. Como se ela estivesse preocupada com a beleza de seus versos, que jorravam dilacerando suas entranhas, ou os postasse para obsequiar a tigrada.

A falta de noção atingia o paroxismo na interpretação de seus arrebatadores poemas eróticos. Seus versos falavam de trepadas, tesão, corpos suados, molhados por toda sorte de fluidos, obscenidades murmuradas; depois de lê-los, muitas leitoras comentavam “O amor é lindo”, barbaridades assim. O mesmo alheamento acompanhava seus textos mais espiritualizados. Os versos, de um panteísmo pagão, eram povoados de ninfas e sátiros, musas, deusas e deuses; os energúmenos, sei lá como, filtravam tudo isso e identificavam Deus, o atleta único, nessa multidão profana. Ela se divertia com as críticas, sorria, dizia a si mesma “São umas bestas” e ia em frente.

E então, certa noite, Gio teve um infarto fulminante e morreu. Tinha 39 anos.

Alguns leitores e amigos, ao receberem a notícia, procuraram o perfil da poeta e a página de poemas: nem uma palavra. Ressabiados, trataram de confirmar a morte em uma, duas, três fontes – e então alguns deles escreveram poemas de despedida. Talvez não muito bons, mas que, pelo menos, a pranteavam. Outros, uns poucos, seguiram o exemplo. No total, dos 60 integrantes da turma do “Lindo” e “gratidão”, uns cinco escreveram alguma coisa de despedida. O resto, silêncio mortal. Partiram com armas e bagagens em busca de outro escritor, a quem mimosear com elogios sem noção. Ou estão curtindo gatinhos e cachorrinhos fofos na rede, uma graça.

Pensando nisso, um amigo de Gio comparou o séquito de leitores não tão fiéis da poeta a um bando de canibais, que devoram um escritor e partem para outra vítima. Mas logo se corrigiu: segundo os primeiros cronistas do Brasil, antes de torturar, abater e se banquetear com a carne de um prisioneiro, os antropófagos faziam-lhe todas as vontades, arranjavam-lhe até mesmo uma parceira de sexo e depois, se ele encarasse a tortura e a morte com um sorriso nos lábios, reverenciavam a memória do herói. E concluiu:

“Os antropófagos da internet, esses, não lembram sequer de um dos poemas de Gio, talvez nem de uma estrofe, um único de seus versos magníficos, e logo vão esquecer que ela existiu; querem apenas encontrar um pobre diabo em busca de leitores e, com suas curtidas e elogios vazios, ter a sensação de que participam, estão (são?) ativos. Pelo menos nas redes, se não na vida”.

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