Antunes, que não era sobrenome, distinguia aquele homem dos demais na agitada Recife. Dava-lhe certa autoridade, que quase ninguém havia suspeitado que jamais tivera. Seja como for, a escolha do pai acabou por desagradar a mãe, que desejava Augusto. Desconfiado que era, imaginou que vontade da mulher era por conta de antigo namorado ou, pior, de caso recente. E lá foi o marido fazer o registro do filho.
— Antunes da Silva Costa.
— Tem certeza, senhor?
— Absoluta! Pode registrar.
Pulemos algumas dezenas de anos e voltemos um pouco antes dos atuais 85 do Antunes, que, por quase 50, fora casado com Laura. Os dois, nenhum dos quais possuía iniciativa, teriam sido juntados quase por imposição dos colegas de trabalho. A garota até que gostou, pois notou certo rubor na cara do rapaz, que ela julgou ser por conta do respeito que ele demonstrou possuir. Ledo engano, pois não passava de timidez de quem nunca havia se aproximado de uma mulher além da mãe e das irmãs.
Apesar da falta de experiência e do quase desastroso primeiro encontro, Antunes até que não se saiu mal nos demais. Acatou alguns conselhos de conhecidos e, por sorte, rejeitou outros tantos, ainda mais porque percebeu que Laura era moça para casar. E foi o que aconteceu no final do ano seguinte, após breve namoro e um período respeitoso de noivado.
Antunes e Laura, apesar de viverem muito bem sozinhos, desejaram aumentar a família. Tentaram e tentaram, mas nada da mulher engravidar. Não se sabe se por ânsia, cobrança dos parentes e amigos ou outro motivo qualquer. Mesmo diante do óbvio, o casal jamais pensou em fazer uma consulta com um especialista. Afinal, como os dois sabiam desde muito cedo, não se pode ir contra a vontade de Deus.
A falta de filhos, alguns poderiam dizer, seria a razão pela qual o casal resolveu ter um cachorrinho atrás do outro durante todo o período de matrimônio. Morria um, viviam o luto por alguns meses e, então, Antunes e Laura tratavam de ir ao abrigo da cidade, onde, invariavelmente, se encantavam com um doce par de olhos anexo a um nariz geladinho.
De todos os cães que eles adotaram, provavelmente o mais singular tenha sido o Caetano, justamente o último. Uma peste, por assim dizer! O danado não poupava os calcanhares desavisados e, por conta disso, ganhou um presente para os passeios pelo bairro: uma focinheira.
Por sinal, o pequeno Caetano, não mais de cinco quilos, foi o que durou mais. Chegou aos quase improváveis 21 anos. Os vizinhos, fofoqueiros que só, não pouparam comentários inapropriados logo após a partida do cachorro.
— Finalmente aquela peste morreu.
— E como durou!
— Vaso ruim não quebra fácil. Se fosse bom, capaz de não chegar a completar um ano.
A despeito do falatório, o briguento acabou virando cinzas, que foram cuidadosamente depositadas numa urna de madeira talhada, que, ainda, hoje, repousa sobre a cristaleira da sala. E foi justamente por conta dessa localização que aconteceu o inesperado.
Pois é, Laura, que era mais afeita que a maioria em relação à limpeza, quis porque quis tirar o pó dos móveis quando, por um descuido, acabou se desequilibrando e bateu com a cabeça na quina da mesa. Não se sabe se sentiu pavor da queda, mas o médico que atestou o óbito afirmou categoricamente que a velha não teve tempo nem de sentir dor.
Antunes da Silva Costa, um nome incomum, hoje é viúvo. Não se tem notícias de que voltará ao abrigo para buscar um novo cachorro. O homem passa os dias sentado na poltrona da sala, de onde tem uma boa vista das duas urnas sobre a cristaleira. De vez em quando, passa pela cabeça do velho que, não tarda, uma terceira urna fará companhia àquelas outras duas.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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